A verdade é parte essencial da democracia, por Pedro Pontual

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Em 24 de março de 1980 o arcebispo de El Salvador celebrava a missa em uma pequena capela, ligada ao hospital da Divina Providência, onde eram atendidos pacientes com câncer. Naquela segunda-feira, um carro parou defronte à capela, seu motorista apoiou um rifle na porta do carro, mirou a porta da capela, o corredor e o altar, onde estava o sacerdote, e atirou. Monsenhor Óscar Romero, que celebrava a missa, morreu imediatamente quando o tiro lhe atingiu o coração.

A despeito da forma pública de sua morte, pouco ou nada se soube sobre o assassino e suas motivações. Isso formalmente. Popularmente, as razões eram conhecidas. Óscar Romero criticava corajosamente as graves violações de Direitos Humanos cometidas pelo esquadrão da morte que apoiava o governo à época. Treze anos depois, investigações conduzidas pela Comissão da Verdade de El Salvador revelaram que o assassinato havia sido orquestrado e executado por policiais e militares que compunham esquadrão da morte, incluindo Mário Molina, filho do ex-presidente de El Salvador, Coronel Arturo Molina.

Em 21 de dezembro de 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas proclamou o dia 24 de março como Dia Internacional pelo Direito à Verdade referente a graves violações de direitos humanos e pela dignidade das vítimas.

Em 19 de janeiro de 2018, o Congresso Nacional brasileiro, por meio da Lei 13.605, dedicou a data “à reflexão coletiva a respeito da importância do conhecimento circunstanciado das situações em que tiverem ocorrido graves violações aos direitos humanos, seja para a reafirmação da dignidade humana das vítimas, seja para a superação dos estigmas sociais criados por tais violações.” Óscar Romero também é santo das igrejas Católica e Anglicana e celebrado pela igreja Luterana.

Este 24 de março de 2021 vê, no Brasil, também morte na porta de hospitais. Um governo federal deliberadamente omisso, quando não inepto, desorienta sua população e esconde informações sobre a doença covid-19 e seu perigo. A verdade é a maior inimiga pública no Brasil de hoje.

Com números superiores a 2 mil mortes por dia, a condução política do governo federal vê uma letalidade diária muito superior que a do genocídio Cambojano, por exemplo, ocorrido entre 1975 e 1979, cuja mortalidade média diária ficou abaixo de 1.500 pessoas, segundo as piores estimativas da Comissão de Documentação do Camboja.

Pela segunda vez nos últimos cem anos, oficiais generais das forças armadas apoiam e omitem mortes patrocinadas pelo Estado. Mas é a primeira vez neste período, talvez na história do país, que o governo federal demonstra a mais inacreditável falta de pesar e empatia num momento calamitoso em que perece a população civil.

As Forças Armadas brasileiras erram ao não rejeitarem as atrocidades em seu passado. Nunca denunciaram as torturas e mortes do regime de 1964 como erros – admitindo ou não a autoria deles – e firmaram compromisso com o respeito e a preservação da dignidade do cidadão brasileiro, a quem juraram proteger.

O direito à verdade, quando respeitado, desnuda os arbítrios e abusos das autoridades cujo dever é preveni-los. Expõe, da mediocridade da censura aos sadismo das masmorras, erros que, uma vez reconhecidos como tal, possam ser condenados pela sociedade – e assim evitados.

Destravar os segredos dos 21 anos entre 1964 e 1985, e resistir aos abusos tão livremente praticados a partir de 2019 são objetivos importantes dos defensores da democracia e das liberdades civis. Assegurar a educação da população e garantir o direito à vida dos 210 milhões de habitantes do nosso país são metas intransigíveis.

Que, como manda a Lei, utilizemos este dia para que possamos reafirmar a dignidade humana dos que morreram, dando algum alento às famílias, mas que possamos entender como inadmissível na nossa sociedade as graves violações que ocorrem diante de nossos olhos.

O texto acima, de autoria do presidente da ANESP Pedro Pontual, foi publicado originalmente no site Congresso em Foco, na coluna Política Viva.