Dia Mundial da Alimentação: políticas públicas apontam caminho para sair do Mapa da Fome
Márcia Muchagata
Erick Brigante Del Porto
Lilian Rahal
O Brasil tem 33 milhões de pessoas passando fome. Esse é um dado conhecido e repetido por aqueles que hoje tratam de alguma forma, seja no governo, na academia ou nos movimentos sociais, das questões relacionadas à diminuição da pobreza e à erradicação da fome no Brasil. Entre muitas contradições e desigualdades existentes no país que é o terceiro produtor mundial de alimentos, as famílias com crianças são as que vivem em maior insegurança alimentar: famílias com duas ou três crianças apresentam percentuais de insegurança alimentar grave de 20,2 e 25,7%, respectivamente, o que compromete o futuro dessas crianças e o futuro da nação de maneira quase irreversível.
A experiência brasileira de combate à insegurança alimentar é um exemplo para o mundo até mesmo no seu desmonte: ela nos ensina que não podemos descuidar da pobreza e da fome jamais. Seis anos de governos que não trabalharam para tratar a questão de maneira firme comprometeram um trabalho árduo, de mais de 35 anos, e nos trouxeram de volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas, de onde tínhamos saído entre 2015 e 2018. Um trabalho contínuo, iniciado com a Constituição de 1988, quando um conjunto de políticas de proteção social começou a ser posto em prática e que fez do Brasil um celeiro de políticas bem-sucedidas de combate à fome e à pobreza com ativa participação da sociedade civil. O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, é um símbolo desta luta. Criado em 1993 foi duas vezes extinto, mas mesmo durante esses hiatos, a sociedade civil permaneceu atuante. Se hoje sabemos quem são e onde estão as 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar é graças à Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSAN), formada por pesquisadores, educadores e extensionistas, que organizou dois Inquéritos Nacionais sobre Insegurança Alimentar no contexto da Covid-19 no Brasil.
Nos anos 2000, o esforço do Estado traduzido em políticas públicas, como o Programa Bolsa Família, o Programa de Aquisição de Alimentos, o Programa Cisternas, apenas para citar alguns, associado a um período de crescimento econômico, à política de valorização do salário mínimo, expansão do emprego formal e elevação da renda, especialmente dos mais pobres, fez com que a fome fosse reduzida a níveis residuais.
Por isso, a volta da fome em larga escala constatada após 2018 não se explica apenas pelos efeitos da grave crise econômica do período. As medidas tomadas para o enfrentamento da crise, que implicaram em mudanças na estrutura de gastos do governo federal e, portanto, no financiamento das políticas públicas, como a Emenda Constitucional 95, o chamado “Teto de Gastos”, passaram a comprimir as despesas orçamentárias discricionárias (e também as obrigatórias) em diferentes áreas. Com a pandemia de Covid-19 a situação de insegurança alimentar piorou ainda mais.
O Estado e a sociedade brasileira são capazes de tirar novamente o Brasil do Mapa da Fome. Esses atores reúnem hoje experiência, recursos, capacidades e, principalmente, compromisso político. No entanto, o cenário atual apresenta um conjunto de velhos e novos desafios. Os sistemas alimentares estão sendo severamente impactados pelas mudanças climáticas e precisam ser repensados, já que modos de produção, abastecimento e consumo vigentes trazem danos sociais, ambientais e privilegiam o consumo de ultraprocessados. Esse sistema alimentar tem funcionado de tal forma que junto com a fome vivemos uma epidemia de obesidade: a prevalência de excesso de peso aumentou de 42,6% em 2006 para 55,4% em 2019, levando ao risco de doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, obesidade, entre outras), com grandes impactos para a qualidade de vida da população e para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Outro aspecto a ser considerado nesse cenário, é que o aumento da produção de alimentos no Brasil se dá sobretudo entre as commodities. A área plantada de milho, soja e cana de açúcar tem crescido continuamente, enquanto a produção de arroz e feijão tem sido reduzida e produção de frutas e legumes permanece quase estagnada. Um conjunto de incentivos e políticas em vigor apoiam a produção destas commodities, tais como desonerações ao longo das cadeias produtivas, ou implantação de logística de armazenamento e transporte. Os mesmos mecanismos não estão presentes para os alimentos básicos ou os produtos alimentares da nossa sociobiodiversidade.
Por outro lado, a inflação dos alimentos, em nível internacional, segue crescente, seja por razões estruturais ou de conjuntura, como a Guerra na Ucrânia. Por fim, um desafio importantíssimo é que, embora alguns orçamentos, como o do Programa de Aquisição de Alimentos e do Programa Cisternas, tenham sido parcialmente recompostos para 2023, no âmbito da PEC da Transição, o novo marco fiscal dificilmente poderá prover o mesmo volume de recursos que estiverem disponíveis para essas e outras políticas nos mesmos patamares crescentes do período de 2003 a 2014. Assim, para além dos orçamentos é fundamental promover avanços, sinergias e novos arranjos para os sistemas alimentares do Brasil, aperfeiçoando tudo aquilo que se relaciona com a maneira de produzir, distribuir, comercializar e consumir alimentos.
Os programas que foram desmobilizados ou desarticulados entre 2016 e 2022 já começaram a ser retomados, agora mais atentos à necessidade de alcançar certos públicos, como mulheres, povos indígenas e população em situação de rua. O PAA, por exemplo, terá maior foco nos agricultores familiares mais pobres e, no mínimo, paridade na participação de mulheres, além de destinar parte dos alimentos adquiridos para equipamentos como as cozinhas solidárias.
Por sua vez, um Grupo de Trabalho, no âmbito do Governo Federal, se encontra em pleno funcionamento para propor uma cesta básica nacional com produtos saudáveis. Pontos como a tributação da cesta básica e dos alimentos no âmbito da reforma tributária estão sendo debatidos na busca por alternativas capazes de garantir o acesso a alimentos saudáveis a todos, especialmente aos mais pobres.
As questões de acesso à água se tornaram emergentes. Além de buscar a universalização do acesso à água para consumo no Semiárido e avançar para outras regiões como a Amazônica, é necessário ampliar a atuação do Programa Cisternas em sua vertente produtiva em articulação com as atividades de assistência técnica e de fomento, com recursos para implementação de projetos produtivos. Outro importante programa retomado é o Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais, que apoia a estruturação produtiva das famílias rurais mais pobres, recuperando a capacidade do Estado de contratar assistência técnica, reajustando os valores dos recursos não reembolsáveis destinados às famílias para investimentos produtivos e realização de novas parcerias para a expansão do programa.
Como a fome tem múltiplas causas, só pode ser tratada de forma intersetorial. Tanto o primeiro governo Lula (2003-2006), como o primeiro governo Dilma (2011-2014) lançaram planos intersetoriais de combate à fome e à pobreza, respectivamente o Fome Zero e o Brasil sem Miséria. Em agosto de 2023 foi lançado o Brasil sem Fome, gestado no âmbito da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) e agora estão sendo organizadas Caravanas do Brasil sem Fome para envolvimento de toda a sociedade na mobilização contra a fome no país.
Uma outra área de atuação é a mobilização da sociedade, com organização das Caravanas por um Brasil sem Fome. Entre as novidades, está o estabelecimento de ações coordenadas entre o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), o SUS e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para identificar pessoas em desnutrição e encaminhá-las para outros serviços para acompanhamento e garantia de acesso a alimentos, por meio das diversas políticas no âmbito dos três sistemas. Também está em fase de estruturação uma política de segurança alimentar nas cidades, da qual faz parte o recém-lançado Programa Nacional de Cozinhas Solidárias, que envolve o poder público em uma ação da sociedade civil que foi fundamental no combate à fome, principalmente durante a pandemia, com o fornecimento de refeições prontas. Uma iniciativa que deve contribuir para melhorar a alimentação nas cidades e ao mesmo tempo promover a adaptação às mudanças climáticas é a Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, que deve ser lançada em breve. Todas essas novas políticas contam com o aprendizado da sociedade civil e de iniciativas bem-sucedidas de alguns estados e municípios, que continuaram atuantes mesmo durante o refluxo das políticas federais. Agora essa participação e a governança do SISAN está fortalecida pela retomada dos espaços de debate no âmbito do Consea e outras instâncias de participação.
Finalmente, para que a política de combate à fome possa ser efetiva é necessário um esforço de monitoramento dos indicadores. Nesse sentido, já a partir de 2023, a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio, a PNAD Contínua, passa a incluir um módulo que medirá anualmente os índices de segurança alimentar da população. Essa medida é primordial não apenas para avaliar a efetividade das políticas mas para o contínuo envolvimento da sociedade no esforço coletivo de fazer com que a próxima saída do país do Mapa da Fome seja definitiva.
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Márcia Muchagata
Integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG). Doutora em Estudos do Desenvolvimento pela University of East Anglia, mestre em Agricultura, Meio Ambiente e Desenvolvimento pela mesma instituição e Engenheira Agrônoma pela Esalq/USP. Antes de ingressar na carreira foi extensionista rural, pesquisadora e docente. Como EPPGG, atuou nos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, da Cultura, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e na Fiocruz. É assessora na Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).
Erick Brigante Del Porto
Integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG). É bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp. gerente de Projeto da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).
Lilian Rahal
Integra a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG). Graduada em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Unicamp. Atuou na construção de diversas políticas relacionadas ao desenvolvimento rural, inclusão produtiva e segurança alimentar e nutricional nos Ministérios do Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social e Cidadania. Atuou no Cade. É secretária nacional na Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).