Extinção do Bolsa Família, que faria 18 anos, deixa incertezas

Nesta quarta-feira, 20 de outubro de 2021, o Bolsa Família completaria 18 anos. Se não fosse a MP 1061/2021 – que extingue o programa e cria o seu substituto, o Programa Auxílio Brasil –, o país ainda contaria com o maior e mais bem avaliado programa de transferência de renda implementado que se tem notícia.

Como a MP 1061/2021 ainda está em tramitação no Congresso e pode, inclusive, ser rejeitada, a principal estratégia de enfrentamento à pobreza do país passa por um grave momento de incerteza. Afinal, são mais de 14 milhões de famílias que recebem o benefício para complementar a sua renda.

Hoje, o Bolsa Família atende famílias em extrema pobreza (renda familiar per capita de até 89 reais mensais) e pobreza (entre 89,01 e 178 reais). As famílias extremamente pobres podem receber quatro tipos de benefícios: o básico, de 89 reais por família; o variável, de 41 reais para gestantes, nutrizes e pessoas entre 0 e 15 anos; o variável jovem, de 48 reais, para adolescentes de 16 e 17 anos; e o de superação da extrema pobreza, que complementa o valor dos demais benefícios, garantindo que cada pessoa beneficiária esteja acima da linha de extrema pobreza. O valor médio mensal do programa está em cerca de 190 reais por família.

O Programa Auxílio Brasil prevê a criação de mais seis benefícios, de acordo com § 1º, do artigo 3ª da MP:

I - o Auxílio Esporte Escolar;

II - a Bolsa de Iniciação Científica Júnior;

III - o Auxílio Criança Cidadã;

IV - o Auxílio Inclusão Produtiva Rural;

V - o Auxílio Inclusão Produtiva Urbana; e

VI - o Benefício Compensatório de Transição.

Para entender melhor essas mudanças conversamos com duas EPPGGs com longa atuação nas políticas nacionais de transferência de renda e de segurança alimentar e nutricional, Letícia Bartholo, pesquisadora e ex-secretária-adjunta da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania, e Lilian Rahal, ex-secretária de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério da Cidadania.

Considerando esses benefícios, é possível indicar avanços no desenho do Auxílio Brasil?

Letícia Bartholo: na proposta original do executivo, basicamente o único avanço é a extensão da transferência de renda a famílias pobres com integrantes entre 18 e 21 anos. Ainda assim, é um avanço questionável, porque somente farão jus a este benefício as famílias com integrantes de 18 a 21 anos que ainda estejam na educação básica.

O Cadastro Único, que dá suporte a toda a identificação das famílias beneficiárias, será alterado?

Letícia Bartholo: Em princípio, o uso do Cadastro Único não será afetado. Existe, na Medida Provisória, uma diretriz de usar a tecnologia da informação como principal meio de identificação, mas o próprio Cadastro é um mecanismo de tecnologia da informação, por isso, não podemos antecipar se haverá alguma mudança. É preciso ter clareza que a MP remete a maior parte das definições para regulamento, daí a dificuldade de antever seus impactos. É difícil prospectar os efeitos de um Programa que não possui, na MP, parâmetros mínimos: não sabemos qual a linha de pobreza, nem quais os valores dos benefícios. Assim, não podemos simular o tamanho do programa, tampouco seu impacto sobre a pobreza e a desigualdade.

Entre outras questões que estão sendo avaliadas por especialistas, do ponto de vista da continuidade e maturidade de políticas públicas, não haveria a necessidade de análise sobre a oportunidade e a eficiência das mudanças trazidas pelo Auxílio Brasil?

Lilian Rahal: Definitivamente, não é o momento para uma alteração tão grande como a que está sendo proposta na MP 1061. Vivemos no país uma situação de insegurança alimentar alarmante, com mais de 19 milhões de pessoas passando fome, que merecem um programa robusto e consistente, que possa contribuir para suas necessidades alimentares básicas, sem riscos de surpresas e sobressaltos, como vem sendo o Bolsa Família. O Bolsa Família precisa ser ampliado para dar conta desse novo contingente de famílias que o demandam e ter seus valores corrigidos para fazer frente à inflação que corrói o poder de compra das famílias pobres. Mas não extinto. A implementação de uma mudança tão grande, há um ano do pleito eleitoral, em um programa tão basilar e relevante como é o PBF, não nos parece adequada.

Desde a sua criação, em 2003, o Programa Bolsa Família passou por sucessivas mudanças e aperfeiçoamentos, na gestão, na estrutura dos benefícios, na integração com a rede de atendimento do Sistema Único de Assistência Social e com outras áreas e programas nos estados e municípios. Por que essas mudanças atuais podem ser tão graves?

Lilian Rahal: Para que colocar em risco a sobrevivência de milhões de famílias pobres, que dependem desta transferência de renda para se alimentar?

Houve tempo para adequações na estrutura de benefícios do governo federal, optou-se por não agir antes. Está sendo alterada a estrutura dos benefícios que compõem o programa, incluindo diversos benefícios novos. Estão sendo acoplados à transferência de renda, por exemplo, benefícios relacionados à inclusão produtiva, rural e urbana, a serem operados pelos mesmos técnicos que hoje trabalham para a implementação do Programa Bolsa Família. Mesmo as evidências nacionais e internacionais mostrando que os programas mais efetivos de inclusão produtiva são complementares à proteção social –  combinados a ela, não desenhados por dentro desta –, o governo optou por um desenho de inclusão produtiva por dentro da proteção social, que além de ser menos efetivo, vai onerar os técnicos especialistas na transferência de renda com benefícios diversos, que têm objetivos e finalidades distintos daqueles nos quais possuem expertise. Por essas razões, dentre outras, não nos parece nada oportuno uma alteração desta, neste momento.

Como a MP 1061 afeta ações de combate à pobreza voltadas para o meio rural?

Lilian Rahal: A MP 1061 ensaia alterar um dos mais relevantes programas voltados para os pobres rurais, o Programa de Aquisição de Alimentos, podendo causar uma descontinuidade desnecessária em um programa que ao mesmo tempo permite a compra de alimentos da agricultura familiar pobre e a doação destes alimentos a pessoas em situação de insegurança alimentar. Qual a razão para esta mudança? Não está explicado nem mesmo na exposição de motivos da MP.

A outra proposta é a criação de um Auxílio Inclusão Produtiva Rural, que compete com o Programa Fomento às Atividades Produtivas Rurais, criado em 2011, e que prevê o apoio técnico para que as famílias rurais pobres e extremamente pobres possam iniciar ou aperfeiçoar suas atividades produtivas, associado ao repasse de recursos não reembolsáveis direto às famílias por meio do cartão do Programa Bolsa Família, seguindo as boas práticas e evidências internacionais sobre inclusão produtiva para famílias pobres rurais. Esse programa vem sendo enfraquecido com cortes orçamentários tanto para a assistência técnica, como para os recursos não reembolsáveis que permitem a estruturação de uma atividade produtiva.

Na proposta apresentada na MP, não há previsão de acompanhamento técnico, essencial para a inclusão produtiva de famílias pobres e extremamente pobres, mas um incentivo financeiro à produção, consumo e doação de alimentos, sem valor definido, a ser repassado para as famílias rurais beneficiárias do Auxílio Brasil. Porém, além disso, está sendo estabelecida a necessidade de uma contraprestação das famílias ao recebimento do benefício, na forma de doação de alimentos.


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