Desaparecimento de Dom e Bruno é ponta do iceberg de ataques a lideranças e servidores, aponta EPPGG

O desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, vistos pela última vez no domingo, 5, no Vale do Javari, no Amazonas, repercute internacionalmente. A terra indígena na região vem sendo invadida com frequência por garimpeiros, madeireiros, caçadores e pescadores, e a ação de narcotraficantes também tem crescido. Oito episódios de violência armada nos últimos anos contra a base de proteção Ituí-Itaquaí, próxima ao local do desaparecimento de Phillips e Pereira já foram denunciados.

O preocupante cenário se estabelece em meio à ausência de políticas públicas para os povos indígenas e comunidades da região e ao desmonte de outras tantas. Edmilson Dias Pereira - EPPGG que trabalhou com povos indígenas nos ministérios da Justiça e da Cultura e na Funai e atualmente está no Ministério da Economia - conversou com a ANESP sobre o significado do desaparecimento para a política indigenista e sobre os ataques que a Fundação e servidores vêm, cada vez mais, sofrendo. O caso é só a ponta do iceberg, afirma.

A Funai vem se mobilizando permanentemente desde a terça-feira, 7, realizando vigílias à noite, em frente ao prédio, sempre às 18h. Nesta terça (14), haverá uma paralisação de 24 horas, começando às 9h da manhã. O dia de luta contará com atividade em frente ao Ministério da Justiça, às 9h, e uma ação junto a parlamentares para cobrança de providências com relação às buscas, à integridade física e à proteção de quem participa das buscas e dos servidores da Funai que atuam em áreas de conflito.

O que o desaparecimento e a suspeita de homicídio de Dom Phillips e Bruno Pereira significam para a política indigenista no Brasil?

É bom começar lembrando que, se confirmados, esses não são os primeiros homicídios na região praticados contra pessoas que trabalham na política indigenista. Em 2019, o Maxciel Pereira, que trabalha na Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari, também foi assassinado, em Atalaia do Norte. Nos últimos anos, os relatos são de que quem pratica ilegalidade na Amazônia - madeireiro, garimpeiro, grileiro, pescador ilegal - tem se sentido empoderado, tanto pelas dificuldades que vem sendo colocadas para fiscalização e repressão desses ilícitos, quanto pelo discurso oficial de algumas autoridades, que deram mais segurança para essas pessoas atuarem livremente. Esses criminosos que antes se sentiam intimidados pela presença de servidores da Funai hoje estão intimidando, ameaçando e chegando às vias de fato, estão matando, ao que tudo indica, pessoas que trabalham na promoção e na garantia dos direitos dos povos indígenas. Então isso é muito grave porque é uma afronta a uma política pública, ao Estado e coloca em risco não só a vida dos servidores da Funai, mas os direitos dos povos indígenas e a vida das pessoas que moram nessas comunidades.

É muito importante que se diga que não são só servidores da Funai e pessoas que trabalham em organizações de assessoramento aos povos indígenas que estão sendo ameaçados e mortos. Nos últimos anos, a gente verificou um crescimento enorme de assassinatos de lideranças indígenas, que combatem invasores em seus territórios ou lutam pela demarcação de seus territórios. Então esse caso, que ganhou uma divulgação muito grande, é a ponta do iceberg. Porque os indígenas e as lideranças da pauta socioambiental, não só na Amazônia, estão sofrendo ataque constante e sistemático.

Sabemos que a Política Indigenista no Brasil tem muitas fragilidades, mas recentemente vem sofrendo ataques frontais. Você pode falar o que está sendo desmontado na área e quais as repercussões?

Com todas as dificuldades, a Funai sempre vinha conseguindo cumprir sua missão institucional, com excelência em alguns casos e de forma suficiente em outros. De 2019 para cá, você teve uma série de mudanças na chefia da Funai, em que servidores com anos de casa, com um acúmulo enorme na política indigenista, foram retirados dessas posições, tanto na Funai de Brasília quanto nas unidades descentralizadas. E foram colocadas no lugar pessoas estranhas ao quadro da Fundação, que não têm nenhum acúmulo na política indigenista, que não conhecem a política indigenista, que tem uma série de especificidades e é uma das políticas públicas mais complexas do Estado brasileiro. Então isso prejudicou de forma tremenda a capacidade da Fundação de garantir o direito dos povos indígenas. Aliado a isso, em várias áreas da Funai começou-se um processo de perseguição aos servidores e em algumas áreas houve uma verdadeira diáspora, com servidores pedindo licença ou exoneração de seus cargos efetivos, porque o ambiente se tornou insalubre e ficou impossível trabalhar a contento diante de assédio moral, abertura de processos administrativos, exonerações sem justificativa. Então essas duas coisas - a colocação de pessoas estranhas à política indigenista em cargos estratégicos da Funai e a perseguição aos servidores -, aliadas ao discurso de algumas autoridades, que incentiva, direta ou indiretamente, a prática de garimpo e exploração de madeira e grilagem e arrendamento de terras indígenas, prejudicaram demais a atuação da Funai na garantia desses direitos.

A gente também tem algumas diretrizes políticas que afetam muito a política indigenista. Percebemos que não há interesse político em avançar na demarcação dos territórios que ainda não estão regularizados e uma leniência em relação ao ingresso irregular de missionários dentro de terras indígenas. O ingresso desses missionários é extremamente danoso, porque, além de levar doenças, a intervenção que eles fazem na comunidade gera muitos conflitos e desagregação social. Aí a gente verifica um desinteresse em mobilizar os recursos do Estado contra as invasões das terras indígenas. O exemplo mais marcante é a terra ianomâmi, mas terras indígenas estão sendo invadidas de norte a sul do país por diversos tipos de criminosos e não vemos interesse em combater isso. Recentemente, a Funai passou a restringir a atuação de seus servidores em terras indígenas que não são homologadas, ou seja, completamente regularizadas, o que deixa uma parte considerável das terras indígenas sem qualquer assistência do órgão indigenista.

Como ficam as lideranças e povos indígenas frente a essa situação. Há algum caminho para resistir e superar na perspectiva de construção de políticas públicas?

Não vou ousar falar sobre como ficam as lideranças dos povos indígenas frente a essa situação, porque acho que não tenho mandato para isso. Mas o que posso falar é que os indígenas vão continuar fazendo o que eles vêm fazendo há 500 anos, que é resistir. Desde a invasão do Brasil, eles vêm resistindo e vão continuar resistindo de formas diferentes, porque cada povo tem sua forma de resistência em particular, cada terra indígena, cada região tem as suas necessidades diferentes. Os indígenas vão continuar onde estão, nos seus territórios, resistindo ao genocídio, à invasão de suas terras, à retirada de seus direitos. Agora, isso não é suficiente. O que os indígenas necessitam é que o Estado seja aliado deles. É obrigação do Estado, por meio de mandado constitucional, garantir os direitos dos povos indígenas. E nos últimos anos não é o que a gente vem verificando. Então eu acho que o futuro, o caminho que a gente deve trilhar é botar o Estado novamente no trilho da garantia dos direitos dos povos indígenas. No sentido de demarcar suas terras, garantir a proteção territorial desses territórios, os direitos sociais, a visibilidade desses povos e uma gestão democrática da política indigenista.