As dores do nascimento de uma nova ordem mundial
*por Ricardo Kalil Moraes
A acumulação de riquezas que movimenta o modo de produção contemporâneo pressupõe a existência de um Estado hegemônico que legitima o funcionamento do sistema. Os Estados Unidos, o atual Estado hegemônico, apresenta dificuldades crescentes para desempenhar esse papel legitimador. Na esteira do crescimento do espaço de oportunidades econômicas sob a emergente soberania chinesa surge um momento de transição, em que se organizam os vetores geopolíticos que possibilitarão a gestação da nova ordem mundial. Esse período de transição caracteriza-se por instabilidades econômicas e políticas crescentes na medida em que aumenta a incerteza quanto à garantia do direito à propriedade, bem como a resistência do Estado hegemônico decadente à perda de poder político. O pretendente a Estado hegemônico tem que lidar com os desafios de reação violenta do Estado decadente, ao mesmo tempo em que articula um arcabouço para conversão da riqueza do mundo da moeda atual para a moeda futura.
O período entreguerras do começo do século XX correspondeu a um vácuo de poder político, onde os diversos Estados em que se concentravam as principais forças produtivas capitalistas se reorganizavam descoordenadamente. A incapacidade momentânea de qualquer Estado fornecer lastro para emissão de moeda internacional impactava negativamente o fluxo de transações internacionais. A agenda de cada Estado estava ocupada prioritariamente por questões domésticas, encaminhadas por fatores e instrumentos internos. A queda da prosperidade e incremento da carestia, por seu turno, estimulou a formação de grupos fechados e ideologias extremistas, que acalentavam e amparavam psicologicamente as massas desorganizadas.
Com o fim da 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos colocam-se como Estado hegemônico, liderando a estruturação de um arcabouço institucional e legal fundamentado na emissão de moeda internacional – o dólar. O empoderamento do dólar estadunidense deveu-se a fatores concretos e práticos, tanto econômicos, com a detenção de parcela significativa da produção mundial de quase todos os bens e serviços; como militares, por representar a capacidade bélica restante no globo, reforçada por armamento atômico. Os planos de reestruturação econômica de europeus e asiáticos se processaram por meio da remessa de equipamentos e produtos estadunidenses, reembolsáveis pelo dólar. Essa reconstrução caracterizou o preço a ser pago pela hegemonia econômica fática. E essa hegemonia foi recompensadora aos Estados Unidos, na medida em que trouxe o poder monopolista de emissão e venda do único produto no sistema econômico que todos devem comprar – a moeda internacional.
Ao longo daquele século, os Estados Unidos crescentemente sustentaram a dinâmica de acumulação por meio da geração de déficits públicos e emissão de dívida. A racionalidade econômica levava à migração de plantas e unidades produtivas para espaços geográficos distintos, segundo vantagens comparativas a partir de dotações heterogêneas de terra, trabalho, capital e capital humano. Concomitantemente, observava-se o crescimento exponencial de mercados de ativos financeiros, que passaram a movimentar os excedentes de patrimônio que não seriam diretamente absorvidos no mecanismo de acumulação tradicional correspondente ao setor produtivo.
No século atual, observamos uma hipertrofia do setor financeiro, com base em títulos da dívida estadunidense, em última instância, e a participação majoritária do leste asiático, especificamente a China, na produção de bens e serviços. Em paralelo, China e demais países em que se localiza a base produtiva constituem os principais detentores dos estoques de títulos da dívida estadunidense. Essa dinâmica de reprodução do sistema, em que o poder de compra estadunidense junto a seus fornecedores é financiada por endividamento crescente, com esses mesmos atores, torna cada vez mais complexa a reprodução da acumulação capitalista.
Da parte desses detentores, cresce a presença de economias de aglomeração, na medida em que se constituem parques produtivos de escala mundial, diferenciados e em constante maturação e desenvolvimento tecnológico. O polo chinês é cada vez mais relevante para a economia mundial como um todo – incluídos mercados das principais commodities como petróleo, carvão, minério de ferro e grãos – e para cada país em separado, ocupando posição de principal parceiro comercial em exportações e importações. Adicionalmente, passa a constituir parceiro econômico relevante por meio de investimento direto e financiamentos.
A evolução tecnológica dos últimos anos tem colocado desafios à reprodução do sistema no que se refere ao emprego da força de trabalho, na medida em que implica em matriz produtiva intensiva em capital, demandante de reduzido contingente de trabalhadores detentores de capital humano adequado a esse novo paradigma produtivo. Entretanto, esse capital humano ainda está em construção, sendo que o estoque até então acumulado pelos trabalhadores rapidamente torna-se obsoleto, representando destruição de seu patrimônio pessoal. Até o presente momento, a possibilidade de destruição do capital tem sido mitigada, na medida em que se possibilita a conversão de ativos físicos na moeda internacional e sua remuneração via sistema financeiro. Nesse momento de indefinição e assimetria de tratamento entre detentores de capital e detentores de trabalho e capital humano, aumenta a desigualdade de renda e a fragilização de parcelas significativas da população. Essa insegurança e incerteza constituem caldo nutritivo para o ressurgimento da retórica extremista. A ocorrência simultânea e dispersa desse discurso e prática em todo o globo, em sociedades com características distintas, sugere o esgotamento da capacidade de reprodução do sistema e a perda de legitimidade da estrutura institucional e legal existente.
Na medida em que a China sinaliza oportunidades de investimento para esse estoque de capital mundial, por meio de iniciativas de conversão tecnológica e obras de infraestrutura ao longo do projeto da Nova Rota da Seda, sob sua jurisdição soberana, inicia-se o processo para gradual constituição do novo Estado hegemônico. Dentro dessa estratégia, torna-se necessária a criação de condições fáticas para o estabelecimento da moeda de curso internacional. Nesse sentido, observa-se a aposta no grupo BRICS, em que ocupa posição de liderança, oferecendo lastro financeiro para realização de investimentos e sucessivos comércios bilaterais em que se aceitam suas próprias moedas locais. À semelhança dos Estados Unidos no século passado, o preço a se pagar pela legitimação do poder hegemônico corresponderia à preservação da riqueza patrimonial de seus futuros parceiros comerciais. Para tanto, faz-se necessária a troca do estoque de ativos em dólares desses países, permitindo sua posterior esterilização e diluição da perda de riqueza no estoque patrimonial chinês.
Pelo estoque de riqueza denominada em dólares, espera-se um processo gradual para o efetivo estabelecimento do novo Estado hegemônico. No entanto, enquanto não se preenche esse vácuo, o sistema opera em ambiente de incerteza crescente, esperando-se recrudescimento de instabilidades econômicas e políticas, incremento de extremismos e conflitos. Simultaneamente, o poder hegemônico decadente não fica parado, empreendendo ações para desestabilizar o período de transição, de forma a comprar tempo para construir alternativa para o mecanismo de acumulação de riquezas e, portanto, evitar o nascimento da nova ordem mundial. Para tanto, faz uso de toda a máquina institucional sob seu controle, utilizando os instrumentos financeiro, midiático, institucional-legal e militar de forma coordenada.
No momento, a despeito de heterogeneidades das diversas sociedades locais, observam-se métodos, discursos e plataformas comuns aos diversos movimentos extremistas, que, em muitos casos, adotam um viés conservador, xenófobo, fundamentalista religioso, fascista e, no limite, nazista. Tais movimentos, adicionalmente, apresentam uma interconectividade e coordenação, sugerindo uma internacional extremista e uma ação inteligente e coordenada para mobilização de recursos financeiros e colaboradores a serem aplicados sobre todo um ecossistema constituído por massas extremistas locais, teoricamente independentes. A agenda extremista abre uma possibilidade de remuneração dos ativos financeiros, na medida em que acena com formas de acumulação pré-capitalistas, como apropriação de ativos públicos, grilagem de terras e comercialização de órgãos.
Em complemento, ocorre uma série de conflitos armados, destacando-se os mais recentes na Ucrânia, Armênia, Níger e Palestina. No caso ucraniano e palestino, a presença estadunidense é marcante, quando não decisiva para o desenvolvimento dos acontecimentos. Notadamente, para a persistência da violência perpetrada pelos Estados Nacionais, na medida em que impede a efetivação de cessar fogo.
A narrativa subjacente à ação bélica de Israel indica elementos de estratégia de longo prazo, na medida em que estabelece táticas diversionistas, ocultando as razões e conflitos geopolíticos na infraestrutura dos acontecimentos. Da tradicional e repetitiva propaganda encaminhada pelo sistema midiático que se fundamenta no estereótipo do árabe, oriental, muçulmano, terrorista, à escalada da violência com o triste resultado de destruição e morte de inocentes leva a movimentos populares de indignação em várias cidades em todo o mundo. Esses movimentos demonstram o descasamento crescente entre as populações e os governos, o que enfraquece o sistema institucional-legal e contribui para o crescimento das instabilidades e incerteza. Nesse sentido, parte da opinião pública mundial estende o objeto de sua indignação a todo um povo, seja a palestinos ou judeus. Essa generalização, além de ser o gérmen de extremismos racistas, também oculta as motivações geopolíticas concretas que seriam o vetor de toda essa tragédia humanitária, intensificando a instabilidade e insegurança. Toda essa algazarra oculta as motivações geopolíticas que guiam as ações dos competidores pelo posto de Estado hegemônico.
Nessa questão de reprodução ampliada do capital, coloca-se em disputa o favor da classe de capitalistas, organizada nos grandes conglomerados multinacionais. Os dois competidores em disputa, máquinas estatais dos Estados Unidos e da China, colocam-se e são colocados, por força da história, como dois candidatos disputando o emprego de Estado soberano legitimador do sistema e provedor da moeda circulante internacional. O processo será longo, sofrido. E tem um Deus ex-machina, a natureza, que, pelo andar da carruagem, pode antecipar o fim do filme em menos de 50 anos.
*Ricardo Kalil Moraes, bacharel em Ciências Econômicas, é mestre em Desenvolvimento Econômico e Doutor em Administração. Servidor público da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, está cedido ao Estado do Rio Grande do Sul, em exercício na Secretaria da Fazenda (SEFAZ/RS). As opiniões expressas no artigo não representam a posição institucional da SEFAZ RS e da ANESP.