7 eixos para pensar um Estado a serviço das pessoas

Frederico de Morais Andrade Coutinho*

Um Estado a serviço das pessoas, essa deve ser a tônica das transformações que o Estado brasileiro tanto precisa. Pessoas, estruturas, governança, processos, orçamento, legislação, tecnologia, esses 7 componentes da administração pública contemporânea devem estar conectados para responder às provocações de cada tempo. Não existem formulações prontas, receitas infalíveis, mas os desafios do mundo real se impõem e precisam ser enfrentados: a volta da fome, a desigualdade acachapante, a educação afetada pela pandemia, a saúde inundada por fake news, e o meio ambiente em chamas. É preciso avançar na direção das soluções.

Ante a tamanhos desafios, soa ingênua qualquer formulação de Estado mínimo que apresente o mercado como solucionador de problemas tanto estruturais quanto contingenciais enfrentados pela sociedade brasileira. O Estado brasileiro precisa recuperar suas capacidades estatais e públicas (parcerias), tão dilapidadas nos últimos anos. Não se trata de uma volta ao passado, mas de traçar um caminho no presente para atingir um futuro almejado a partir dos aprendizados das últimas décadas de regime democrático. A evolução deve ser paulatina, incremental, articulada e com propósito.

Na gestão de pessoas, é necessário que o Estado possua servidores qualificados, com as competências necessárias para resolver problemas complexos, mas, mais do que isso, é preciso que possua servidores vocacionados, imbuídos de ethos público, empáticos e que em alguma medida espelhem o conjunto da população a que estejam servindo. O Brasil geralmente aparece muito bem em rankings internacionais quando o assunto é a meritocracia de sua burocracia, mas é preciso avançar muito mais na seleção e desenvolvimento para conseguir um corpo burocrático mais diverso e vocacionado. A sub-representação de pessoas negras no cômputo geral do serviço público e de mulheres em cargos de liderança é um fato que prejudica a aderência das políticas públicas às necessidades da população. Avaliações de desempenho proforma com foco no passado não tem se mostrado efetivas. Um desafio está em olhar para as necessidades futuras, em especial de aprendizado e suporte para os servidores gerarem melhores entregas.

Quando pensamos nas estruturas do Estado, também devemos ter como foco a quem elas devem servir. O Estado possui diversas formas de organização que variam num continuum de rigidez/flexibilidade e noutro de centralização/descentralização. Cada forma de arranjo organizacional tem o seu valor e deve ser utilizada em sua plenitude objetivando levar mais e melhores serviços aos cidadãos. Muitas dessas estruturas inicialmente criadas com maior autonomia foram se fechando, caindo numa armadilha paralisante, receosas das entidades controladoras. O controle é necessário e bem-vindo, mas não pode extrapolar suas funções e nem asfixiar as estruturas de execução, sob pena da não entrega de bens e serviços a quem deles precisa. O tênue balanceamento entre capacidades estatais de controle e execução é fundamental para que a sociedade seja beneficiada.

Ante a complexidade da ação estatal, a governança se coloca como um pilar fundamental no sentido de harmonizar mecanismos de liderança, estratégia e controle, intra e interorganizacionais, com foco na prestação de serviços públicos. No entanto, os últimos avanços focaram aspectos como a integridade, regulação e transparência, importantes, mas não suficientes para atingir a finalidade da governança. Recente discussão aponta a equidade como um valor complementar a ser incorporado à sistemática da governança, reflexão prioritária considerando-se as desigualdades da nossa administração pública e em última instância da própria sociedade.

A gestão dos processos que perpassam a administração pública é foco reiterado de atenção por parte de governantes, buscando cada vez mais eficiência, muitas vezes obtidas por meio de ganhos de escala e digitalização de serviços. Essa é uma transformação já em curso, e acelerado, mas não se pode perder de vista o conjunto da população que está sendo atendida. Balcões virtuais e aplicativos online são soluções inteligentes e com bom custo-benefício, mas muitas vezes excluem a parcela mais vulnerabilizada da população, aquela que tem dificuldade de compreensão da escrita e que tem acesso à internet de baixa qualidade, muitas vezes intermitente, ou que sequer tem acesso. A complementaridade de múltiplas soluções de atendimento precisa ser buscada mirando o atendimento universal.

O orçamento é uma peça-chave para a concretização das políticas públicas demandadas pelos cidadãos e cidadãs, mas ainda hoje é muito pouco participativo e transparente para o conjunto da sociedade. A despeito de iniciativas locais mais participativas que começaram nos anos 80 e muitas vezes foram descontinuadas em períodos subsequentes, os orçamentos têm observado, majoritariamente, uma tradição de confinamento de seus debates aos gabinetes do Executivo e do Legislativo. Permeabilidade social aos debates de planejamento e orçamento em suas funções alocativa, distributiva e estabilizadora é um objetivo a ser buscado.

Todas as mudanças já mencionadas precisam ter um rebatimento normativo. Um cipoal de leis, decretos e outras normas que devem manter coerência com uma realidade cada vez mais incerta e volátil. Para tanto é necessária uma mudança de chave do nosso direito administrativo. Seu eixo central precisa ser alterado para uma versão habilitadora do direito, com menos apego às formas e mais apreço aos fins e aos resultados. A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB) já traz avanços nesse sentido, mas o exercício diário do direito e da atividade legislativa precisam estar sempre atentos a esses princípios para aprofundar a adesão do direito aos problemas vivenciados na realidade.

A tecnologia, de forma similar à legislação, perpassa todos os demais elementos da administração pública. Sistemas de informação muitas vezes condicionam a atuação de servidores públicos de formas que nem a legislação consegue fazer. Pensar em sistemas que funcionem com o foco no beneficiário ainda é um desafio. As novas tecnologias como inteligência artificial, blockchain, robótica, machine learning, big data, internet das coisas, entre tantas outras, serão cada vez mais relevantes, mas elas não substituem o elemento humano e precisarão ser inclusivas e progressivas. Funcionam melhor com as pessoas, não em substituição às pessoas.

O Estado democrático de direito brasileiro tem imensos desafios a cumprir neste século. Ele precisa provar que pode responder a contento aos graves problemas sociais enfrentados por nossa sociedade, sob pena de dar margem a arroubos totalitários que se espalham mundo afora. A garantia da liberdade de um povo passa pela discussão de um Estado efetivo, que esteja a serviço das pessoas, e esse é um foco que não se pode perder de vista.


*Frederico de Morais Andrade Coutinho é graduado em Direito pela UFMG e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro, mestre em Administração pela UnB. Com experiência no setor público desde 2006, em 2011 ingressou na carreira federal de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG). Atuou no Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos, Ministério da Economia e Cade. Atualmente é Gerente de Projetos na Secretaria Extraordinária para a Transformação do Estado, do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.

Este artigo abre a série de publicações sobre os atuais desafios para as políticas públicas, em celebração aos 34 anos da ANESP.