EPPGG Marcelo Nunes publica artigo "Concorrência.com: cláusulas de paridade, MFNs e agências de turismo on-line"

O Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) da 13ª Turma Marcelo Nunes de Oliveira, atualmente no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), publicou artigo no Jota.info, site de notícias jurídicas, nesta segunda-feira (2), com o título "Concorrência.com: cláusulas de paridade, MFNs e agências de turismo on-line".

As informações e opiniões contidas no texto não refletem necessariamente o posicionamento da ANESP.

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Concorrência.com: cláusulas de paridade, MFNs e agências de turismo on-line

O que se espera é que tenhamos maior nível de competição no mercado de reservas on-line de acomodações no país

Em 27 de março de 2018, última terça-feira, o Tribunal do Cade homologou Termo de Compromisso de Cessação de prática (TCC) com as empresas Booking.com, Decolar.com e Expedia, com o objetivo de suspender investigação que, desde julho de 2016, procurava examinar os potenciais efeitos anticompetitivos das chamadas “cláusulas de paridade”, aplicadas por essas empresas nos contratos celebrados com a rede hoteleira do Brasil.

Mas no que se constituem essas obrigações de paridade? De maneira resumida, as cláusulas de paridade praticadas pelas agências de turismo on-line (online travel agencies – OTAs) são uma espécie de cláusula de nação mais favorecida, ou most favoured nation clauses – MFNs, por meio das quais um vendedor garante a um comprador um preço ou condição que será, no mínimo, tão favorável quanto o preço ou condição ofertados aos seus demais compradores.

Não há, no meio antitruste, consenso a respeito do tratamento que as autoridades concorrenciais devem destinar às empresas que praticam cláusulas MFN em seus contratos. Na Lei 12.529/11, em seu artigo 36, §3º1, dentre o rol de práticas listadas, não há expressa descrição de conduta anticompetitiva que se assemelhe à adoção de MFN, embora tais cláusulas possam ser examinadas sob o prisma do caput do §3º. De forma semelhante, na Comissão Europeia esse tipo de cláusula é analisada de maneira subsidiária à adoção de outras práticas potencialmente lesivas à concorrência, como a fixação de preço de revenda, conforme o guia de restrições verticais daquela autoridade2.

A controvérsia a respeito das cláusulas de MFN advém dos possíveis efeitos antagônicos que podem resultar da sua adoção por agentes econômicos, o que não é, em princípio, muito diferente do dilema enfrentado pelas autoridades antitruste quando da análise de outras práticas verticais. Cláusulas dessa espécie podem, por um lado, ter eficiências sob o ponto de vista de redução do custo de transação dos compradores, que podem se beneficiar da não necessidade de empreender repetitivas cotações de preços e negociações com fornecedores ao longo do tempo. Ademais, podem também preservar os investimentos realizados por compradores em uma relação de longo prazo com seus fornecedores, dando segurança quanto aos termos contratados e da recuperação dos investimentos ao longo do tempo.

Por outro lado, cláusulas MFN podem provocar efeitos negativos ao ambiente concorrencial, com potenciais efeitos sob o ponto de vista coordenado, reduzindo o incentivo à competição entre os players de mercado; e sob o ponto de vista unilateral, ao elevar as barreiras à entrada de novos competidores.

Tais questões não são novidade para as autoridades antitruste. Entre 2013 e 2015, a Apple e a Amazon foram investigadas pela Comissão Europeia e pelas autoridades antitruste do Reino Unido e Alemanha. Elas foram acusadas de impor em seus contratos com editoras cláusulas de MFN, impedindo-as de oferecer condições mais vantajosas para venda de livros e e-books por outros canais. Tais cláusulas foram objeto de acordo com as referidas autoridades e banidas dos contratos firmados entre as plataformas e os editores.

Em relação às cláusulas de paridade praticadas pelas OTAs, seus potenciais efeitos negativos são semelhantes. Ao exigir paridade de preços e condições dos hotéis, esses estabelecimentos ficam proibidos de ofertar condições mais vantajosas por meio de outros canais, sejam eles OTAs concorrentes, reservas via telefone, balcão, e-mail, etc.; ou, caso ofertem condição mais vantajosa, ficam obrigadas a estenderem a oferta às OTAs que exigem paridade.

Na prática, são dois os efeitos mais evidentes que decorrem da exigência de paridade. Segundo Baker e Morton (2018)3, há um impacto exclusionário e outro colusivo. O impacto exclusionário decorre da impossibilidade de que uma OTA mais eficiente, que cobre uma taxa de comissão mais baixa do que Booking, Decolar ou Expedia (por exemplo, 10% de comissão contra 15% das empresas investigadas), possa repassar essa eficiência ao consumidor cobrando um preço mais baixo. Por conta da exigência de paridade, mesmo cobrando uma comissão mais baixa, o preço ao consumidor deve ser, no mínimo, igual ao ofertado pelas OTAs que impõe a cláusula aos hotéis. Como consequência, empresas mais eficientes ou entrantes acabam não tendo condições de se diferenciar das empresas dominantes para ganhar mercado.

O segundo efeito, denominado de colusivo pelos autores, decorre exatamente dessa impossibilidade de competição pela oferta de melhores condições aos consumidores. Como decorrência, há um efeito “homogeneização” do mercado, com todos os concorrentes limitados em suas capacidades de competir mais vigorosamente, levando a uma situação de acomodação e paralelismo de condições, efeito similar ao de um cartel.

Por conta desses efeitos danosos, diversas autoridades nacionais vêm, desde 2015, adotando uma ofensiva contra as cláusulas de paridade praticadas pelas OTAs. Alguns países como Alemanha, França, Itália e Áustria4 baniram completamente as MFNs (wide clause) praticadas por agências de turismo on-line. Em outros países, como Suécia, Austrália, Nova Zelândia, Dinamarca, Reino Unido, Polônia e Grécia as autoridades antitruste entenderam razoável permitir a prática de cláusulas de paridade de maneira restrita (narrow clause) em relação aos sites dos próprios hotéis.

Segundo as autoridades que concluíram ser razoável permitir a manutenção da narrow clause, tal exceção seria necessária para prevenir o risco de free riding por parte dos hotéis, já que as OTAs realizam grandes investimentos em suas plataformas, e garantem a exposição dos estabelecimentos sem cobrança, exceto quando da efetiva realização de uma reserva. Se o consumidor puder comparar os preços no site de uma OTA e, em seguida, efetuar a reserva no site do hotel escolhido, por um preço mais baixo, a OTA não seria remunerada, o que poderia, no longo prazo, causar a insustentabilidade desse modelo de negócio que, sabidamente, trouxe diversos benefícios ao consumidor final, especialmente ao reduzir sobremaneira os custos de transação para comparar e reservar acomodações.

Assim, nos países mencionados, Booking e Expedia celebraram acordos ou deixaram de exigir paridade de maneira ampla, mantendo a possibilidade de utilizar cláusulas restritas em relação aos sites dos próprios hotéis; exceto naqueles em que as cláusulas de paridade foram banidas por completo, por força legal, ou, no caso da Alemanha, por decisão do órgão antitruste.

 

Obviamente, o potencial ofensivo à concorrência da adoção dessas cláusulas depende do porte das empresas que fazem tais exigências. Dificilmente empresas que não possuem posição dominante, ao exigirem a paridade, provocarão um efeito danoso ao mercado, já que: (i) ou os hotéis não se submeteriam a essas condições, devido à presença de outros concorrentes relevantes que não fazem tal exigência; ou (ii) o enforcement dessas cláusulas por parte de OTAs com baixa participação de mercado seria pouco efetivo, já que, nesses casos, o poder de barganha da agência é reduzido. Entretanto, no caso brasileiro a prática é potencialmente danosa, pois é adotada pelas maiores agências de turismo on-line com atuação no país que, conjuntamente, detêm mais de 60% do mercado de reservas de acomodação via internet no Brasil (joint dominance).

Nesse sentido, o Cade negociou um acordo com as três OTAs representadas – Decolar, Booking e Expedia – similar aos termos negociados em diversos outros países, mantendo a possibilidade da narrow clause. O Cade entendeu que há elementos suficientes para que se conclua pela presença de efeitos negativos ao consumidor quando da prática da cláusula ampla. Contudo, os efeitos em relação à manutenção ou não da cláusula restrita não são tão óbvios. Segundo Baker e Morton (2018), os primeiros estudos realizados após o banimento das cláusulas de paridade nos países que iniciaram as investigações demonstraram que houve queda de preços independentemente do tipo de cláusula banida (ampla ou restrita).

Assim, o que se espera é que em pouco tempo tenhamos maior nível de competição no mercado de reservas on-line de acomodações no país, com maior liberdade para que as OTAs concorram tanto pelas taxas cobradas dos estabelecimentos hoteleiros quanto pelos preços cobrados aos consumidores finais, com possível redução de preços e entrada de novos competidores.

Tal precedente assume uma importância ainda maior em um cenário em que se observam mudanças profundas em diversos mercados, com a emergência das plataformas de múltiplos lados como um modelo de negócio dinâmico e altamente adaptável para a prestação das mais variadas formas de serviços, desde reservas de acomodações, passando por marketplaces financeiros e de varejo, até a prestação de serviços como delivery e transporte de passageiros. Nesse cenário, problemas similares aos evidenciados no mercado de OTAs são possíveis de serem observados e o referido precedente aponta o caminho que a autoridade antitruste nacional pode adotar na abordagem de situações análogas em mercados correlatos.

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1 Note que o Inciso IX do §3º do artigo 36 da Lei 12.529/11 trata da imposição, por um agente upstream, de condições a serem seguidas pelo agente downstream na relação deste com terceiros, o que não se aplica às MFNs, já que tais cláusulas se referem à relação do agente upstream com terceiros.

2 Parágrafo 48 do Guideline on Vertical Restraints. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A52010XC0519%2804%29>.

3 BAKER, Jonathan B.; MORTON, Fiona M. Scott. Antitrust Enforcement Against Platform MFNs. Yale Law Journal, 2018.

4 No caso da França, Italia e Austria, o banimento foi decorrente de alteração legislativa, apenas no caso Alemão decorreu de uma intervenção antitruste.

Marcelo Nunes de Oliveira – Coordenador-geral de Análise Antitruste na Superintendência-Geral do CADE. Trabalha no CADE desde 2009, tendo sido admitido por meio de concurso da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Pós-Graduado em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), bacharel em Administração pela Universidade de Brasília (UNB). Graduando em Direito pelo IDP Brasília.