Efeitos de um golpe: 60 anos depois, reflexões sobre a democracia

Marcelo Viana Estevão de Moraes*

O fato histórico singular representado pelo golpe de Estado de 1964 e a queda do regime constitucional de 1946, ele próprio nem tão democrático assim em uma perspectiva liberal cosmopolita, já foi analisado sob inúmeras perspectivas. É consensual a percepção de que ocorreram diversos golpes dentro do golpe, em um ciclo longo que foi da adoção de uma gambiarra parlamentarista, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, até a instituição do Ato Institucional nº 5 (AI-5). O AI-5 é a referência simbólica distópica da ditadura em sua fase mais sombria.

Mais interessante é refletir sobre a regularidade sociológica com que as instituições liberais democráticas são ameaçadas por ressurgências ditatoriais no Brasil, com destaque para a recente intentona de 8 de janeiro de 2023 contra os Poderes da República, envolvendo atores sócio-políticos que funcionalmente estavam presentes naquele 1º de abril de 1964: o latifúndio exportador modernizado como agronegócio; a burocracia fardada rent-seeking; o neopentecostalismo empresarial como agente da instrumentalização política da religião. Na verdade, o 8J foi uma versão em farsa, frustrada, mais próxima do AI-5, se forem considerados os depoimentos que vêm sendo colhidos pela investigação policial.

 O 8J fracassou exatamente porque expressou uma ruptura do bloco político que derrubou o governo trabalhista da Presidenta Dilma Rousseff por meio de um impedimento sem lastro em efetivo crime de responsabilidade. O golpe contra Dilma teve funcionalmente características mais próximas daquele contra o Presidente João Goulart, considerando o arco de aliança das forças golpistas, inclusive quanto ao elemento externo. O 8J falhou em grande parte em razão da posição contrária do governo americano, ainda assombrado pelo ataque de trumpistas ao Capitólio dois anos antes. A similitude entre os dois eventos salta aos olhos.

Tanto como em 1964, o golpe contemporâneo também teve um ciclo longo, cujas sementes foram plantadas nas chamadas “jornadas de junho” de 2013. O fato é que o regime democrático constitucional de 88 foi sendo erodido desde então pela ascensão do estado de exceção (cujo ícone foi a Operação Lava Jato) e pela instauração gradativa do parlamentarismo da predação, idealizado pelo então Deputado Federal Eduardo Cunha e materializado pelo Deputado Federal Artur Lira (cujo ícone foi o orçamento secreto). Ambos ocupando a presidência da Câmara dos Deputados nessas ocasiões.

Há outra correlação entre os dois momentos históricos e a realidade socioeconômica: expressam reação a processos de incremento da renda do trabalho, de aumento do salário-mínimo e/ou de queda substancial do desemprego. O empoderamento do mundo do trabalho, nos contextos históricos dos dois golpes, afrontou as reminiscências, simbólicas ou não, da “Casa Grande”. A mentalidade da “Casa Grande” será sempre a antítese de uma cultura cívica democrática.

Também há correlações, ontem e hoje, com o contexto internacional: a escalada do conflito geopolítico atual entre os EUA, secundado pela OTAN, e a aliança estratégica entre a China e a Rússia representa um fator de risco. Esse ambiente tem fomentado o extremismo político (significativamente designado de forma asséptica pelo termo “populismo”). A dependência política e econômica do Brasil em relação a essas potências antagônicas deixa o País vulnerável a ações externas de desestabilização e “mudança de regime”.

O Brasil sempre foi mais influenciado pelo mundo do que o influenciou, devido à gênese colonial e à posição periférica; sua autonomia sempre foi limitada. A matriz colonial, como ausência de soberania, é exatamente a antítese da governança democrática: o comando vem de cima para baixo e de fora para dentro. A independência política não mudou nem a natureza do comando político autoritário, nem a estrutura socioeconômica. A Constituição de 1824 manteve um regime político em que o rei não apenas reinava, mas governava uma sociedade organizada com base em plantations e na escravidão. O império bragantino era uma transposição tropical do Estado pombalismo português, ele próprio já periférico na Europa de seu tempo. O Antigo Regime, contra o qual se insurgiram as revoluções europeias dos séculos XVIII e XIX, aqui se projetou até a proclamação da República, um golpe de Estado sem povo que não significou uma ruptura. Apesar do crescimento do mercado interno e dos impulsos industrializantes, a lógica econômica predominante preservou o sentido da colonização, e a ordem política, tão oligárquica quanto a imperial, mimetizava instituições republicanas e federativas norte-americanas em um constitucionalismo de fachada.

Grosso modo, a política sempre foi organizada em torno de duas correntes básicas de pensamento e ação, conservadores e liberais, saquaremas e luzias, similares como expressão das camadas dominantes e das elites dirigentes. “Nada mais conservador que um luzia no poder”. Os demais homens livres em uma sociedade escravocrata não contavam politicamente. Os escravos negros e os povos originários sequer eram gente: estavam a meio caminho entre as peças e os animais. Na dimensão simbólica, é uma sociedade iletrada, marcada pelo atraso educacional e científico. Mesmo a modernização – que ganhou impulso nos anos 30, com urbanização e industrialização – foi conservadora. A lógica sempre foi a da predação extensiva dos recursos naturais e a da exploração agressiva do mundo laboral.

As bases do autoritarismo brasileiro estão fincadas solidamente nessa formação e alimentam a nostalgia do reacionarismo contemporâneo: é esse o país que querem de volta, embora sempre tenha estado aí. Tudo o que contrarie essa distopia, desde o Iluminismo, é por definição e genericamente denominado de “comunismo”.

Essas marcas de origem emergem hoje como retorno do recalcado, junto com a especialização regressiva primário-exportadora na economia e a perda de expressão dos atores sociais e políticos nascidos do processo de industrialização, com destaque para as diversas variações do trabalhismo como corrente de pensamento e ação representativa da base da pirâmide social. A industrialização brasileira foi derivada de uma modernização conservadora e autoritária, mas que paradoxalmente engendrou as condições sociopolíticas que propiciaram o advento do regime liberal-democrático de 1988. Nunca o país havia tido instituições políticas tão liberais e tão democráticas. Entretanto, a perda de complexidade econômica subsequente desidratou, pouco a pouco, as condições de viabilidade de uma democracia mais vigorosa, fenômeno que não é exclusivamente brasileiro.

Por fim, os novos padrões de relacionamento social mediatizados por grandes redes telemáticas, saudados na origem como potencialmente emancipadores pela democratização do acesso à informação de qualidade (assim como, mais recentemente, a expansão das aplicações da inteligência artificial), tornaram ainda mais complexas as condições para uma comunicação social bem-informada, necessária para subsidiar processos de tomada de decisão que sejam democráticos. Os ardis e as informações falsas, projetados ao infinito, comprometem a existência de uma cultura cívica democrática pervasiva e geram a segmentação da sociedade em bolhas de opinião baseadas em vieses de confirmação. É a falência da razão comunicativa dialógica que permite a resolução pacífica e democrática de conflitos em uma sociedade complexa.    

O Brasil sobreviveu à aventura do 8J, mas o quadro ainda é de incerteza acerca do futuro da democracia. O esforço de transformação “iluminista”, gradual e paulatina, da cultura política brasileira sofreu a reação da maré montante de todos os arcaísmos, um conservadorismo que pode ser designado de neobandeirantismo, predador de coisas e gentes, e que é a antítese da governança democrática com desenvolvimento sustentável. É um mandonismo midiático, que conjuga violência e autoritarismo na manipulação de corações e mentes, intrinsecamente excludente, que almeja bloquear a expansão da cidadania.

*Marcelo Viana Estevão de Moraes é EPPGG e Diretor do Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB).


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