Produzir dados para pensar políticas para pessoas LGBTQIA+ é desafio dos próximos anos, diz EPPGG Bruni

Dois movimentos em direções contrárias merecem atenção neste Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. Por um lado, a visibilidade do público e das bandeiras LGBTQIA+ é cada vez maior nos últimos anos, com mobilizações do porte da Parada do Orgulho LGBTQIA+ realizada no domingo (19) em São Paulo. Por outro, o país vive um momento de retrocessos na agenda, que são impulsionados pela mentalidade de lideranças do governo federal, e pela estagnação e desmonte de políticas públicas setoriais. 

Para interpretar esse processo e buscar compreender as nuances que recaem sobre as políticas públicas, a ANESP conversou com o EPPGG e Administrador Público pela FGV Fábio Moassab Bruni. A partir de sua vivência enquanto gestor público e homossexual, Bruni, nos traz um olhar muito particular sobre temas como representatividade, candidaturas LGBTQIA+ nas Eleições 2022, decisão política enquanto propulsor de violências e intolerância, o papel das políticas públicas setoriais como garantidoras de direitos e a resiliência das lutas por direitos LGBTQIA+.

“Será impossível inverter o dado do país que mais mata LGBTQIA+ se o Estado não fizer políticas públicas específicas e que garantam direitos para essa população”, afirma. O EPPGG propõe como desafio para os próximos anos conseguir dados e subsídios para a formulação de boas políticas públicas para esse público.  

No dia de hoje, a ANESP reforça seu papel na defesa daigualdade de direitos, pela diversidade e pela tolerância e no combate a qualquer tipo de discriminação ou violência contra a população LGBTQIA+. 

A Parada do Orgulho LGBTQIA+ em São Paulo teve como mote “Vote com Orgulho”. Neste ano eleitoral qual a importância de trazer a discussão sobre representatividade e comprometimento com a causa? Há perspectivas de avanço nesse sentido?

Estamos a menos de 100 dias das Eleições e é realmente muito importante ter adotado o mote “Vote com Orgulho” na maior parada do orgulho LGBTQIA+ do mundo. Nós existimos e precisamos nos ver representados. Acho que essa visibilidade tem gradativamente melhorado no Brasil. A gente vê, por exemplo, o senador Fabiano Contarato (PT/ES), assumidamente homossexual. A gente viu nas eleições de 2020, o crescimento do número de parlamentares LGBTQIA+ nas câmaras de vereadores Brasil afora. Só no município de São Paulo, no conjunto de vereadores, temos duas pessoas como parlamentares trans, Érica Malunguinho (PSOL) e Thammy Miranda (PL). É muito interessante ver esse movimento, uma vez que ele inclui partidos de um amplo espectro político - não estamos falando somente de candidatos só de esquerda ou só de direita, é uma questão mais ampla, de identidade, de expressão sexual. Ela está no mundo e estando no mundo, vai ter gente de diversas matizes ideológicas. Então, é, de fato, muito importante ter essas pessoas nesses espaços públicos nos representando. 

Prospectando esse cenário para as Eleições de 2022, acho que vários desses candidatos e dessas candidatas - eleitos para vereança em 2020 - serão candidatos nas Eleições deste ano para as Casas parlamentares nos estados e no âmbito federal. Isso nos faz crer que podemos avançar em termos de representatividade. Sabemos que esses processos são lentos, muito mais lentos do que a gente gostaria, mas é um bom começo.

E quanto à sociedade como um todo, algo está mudando em relação ao preconceito contra pessoas LGBTQIA+?

Me parece que temos uma sociedade em mutação. Presenciamos a Geração Z chegando, que já nasce no ambiente digital, ou seja, já está completamente acostumada a ver que existem pessoas diferentes no mundo, que há diversidade. No meu caso, eu nasci em uma cidade no interior de São Paulo, não tendo, portanto, quase nenhum contato com semelhantes durante a minha infância. Ficava restrito ao meu ambiente familiar e escolar. Mas existe um mundo fora desses ambientes. Hoje, crianças e adolescentes têm noção que existe uma diversidade de expressões. E isso muda toda a lógica da gente se reconhecer e reconhecer o outro como uma pessoa. Também nesta dimensão, tudo muda muito lentamente. A nova geração chega, mas não chega com a posição de alterar radicalmente as estruturas sociais, decisões e métodos de poder. Em diferentes esferas de decisão, sentimos que há muito preconceito. Falo isso como homem gay e reconheço isso também. Se considerarmos as pessoas trans, identificamos como o setor público é quase incapaz de atender uma pessoa trans com dignidade, respeitando a sua identidade de gênero, respeitando questões específicas que tocam em seus direitos como saúde, segurança pública, entre outros. Então, isso significa que temos muito ainda o que avançar. As estruturas não estão preparadas para que esse avanço aconteça e, paradoxalmente, acho que estamos em um patamar em que o avanço é irreversível. A gente não vai retroceder. 

O Brasil, pelo quarto ano consecutivo, é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+. É o que mostra o relatório produzido pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ lançado em maio de 2022. Como você vê a relação do desmonte de políticas públicas do período recente e esses dados?

Isso é realmente muito triste e guarda uma relação intrínseca com a falta de reconhecimento do Estado brasileiro e das autoridades atuais, que não nos veem como cidadãos de direitos. Em todas as falas do presidente da República, dos ministros responsáveis por políticas públicas que afetam esse público, encontramos sempre uma culpabilização das pessoas que sofrem preconceitos e pelos preconceitos que elas estão sofrendo. Parece redundante, mas é isso. A retórica é de inversão do discurso e culpabilizam a vítima. Esse é um tema que eu acho importante de ser tratado, mas precisamos pensar como avançamos a partir disso. Recentemente, assistimos a um embate envolvendo o IBGE com uma decisão judicial impondo que o órgão mapeasse a população LGBTQIA+ no Censo de 2022. A sociedade precisa disso, não existe política pública sem dados, sem informações: quantos somos, onde estamos, como vivemos, composição familiar. O fato é que não temos esse diagnóstico e como vamos formular políticas sem informações? 

Será impossível inverter o dado do país que mais mata LGBTQIA+ se o Estado não fizer políticas públicas específicas e que garantam direitos para essa população. Ressalte-se aqui que não estou falando que o IBGE falhou ao não incluir essas questões no Censo de 2022. Entendemos que é uma impossibilidade técnica, e o IBGE é um órgão com grande respeitabilidade, entendendo assim que é complexo incorporar questões novas em um questionário que está debatido e validado há muito tempo, que tem questões metodológicas muito sérias e rígidas, que exige um treinamento da equipe de recenseadores. Assim, qualquer nova inclusão, novo conceito, tem que ser muito bem tratado e com tempo adequado. No entanto, precisamos e merecemos ter esses dados e fica aí um desafio, um norte para a próxima década em ter dados e subsídios para a formulação de boas políticas públicas.  

E na perspectiva de outros direitos, como saúde, educação e trabalho? Como está o cenário de políticas públicas federais, por exemplo, que se mantêm ou que precisam ser consolidadas e valorizadas?

Se temos no campo ideológico e de direitos quase que um desprezo oficial das autoridades pela população LGBTQIA+, no campo das políticas públicas mais setoriais como Saúde, Educação, Trabalho, nós vemos uma ausência de coordenação federal. Nesse aspecto, a Constituição Federal preconiza que o governo federal basicamente tem o papel de co-financiar e coordenar as políticas públicas. O que a pandemia de covid-19 trouxe como trauma gerencial é que o governo federal adotou a falta de coordenação e a falta de financiamento não como incompetência, mas como método. É possível identificar claramente a intenção de desarticular sistemas nacionais de provisão de serviços e políticas públicas. Esta seara é muito complexa. A política LGBTQIA+ é uma política transversal de garantia de direitos, ela depende de outras políticas setoriais para que funcione bem, para que se tenha uma boa articulação, para que se realize de fato na ponta. Então, não é possível pensar em políticas LGBTQIA+ em um quadradinho, isoladamente. Ela só vai garantir direitos em conjunto com a Saúde, a Educação, a Assistência Social, o Trabalho, a Cultura, a Segurança Pública. E para isso é fundamental um governo federal forte, atuante e querendo fazer a diferença.