Falhas na gestão da vacina contra covid-19 ameaçam Brasil com desigualdade e mortes

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O ano que, espera-se, será marcado pelo começo da vacinação contra o novo coronavírus no Brasil inicia com pendências e descompassos que já foram visíveis em 2020. A explícita lacuna na gestão da imunização é grave, amplia a desigualdade no país e resulta em mais mortes por covid-19.

Removida do contexto de estratégia nacional de saúde pública, a vacina passou a ser vista como uma questão individual e não mais como bem comum. Onde deveria haver cooperação entre governos federal, estaduais e municipais, e entre os setores público e privado, estamos assistindo uma disputa fratricida entre entes federativos, e a descompromissada crença no mercado como solução para a questão. Por fim, lideranças políticas vêm fazendo declarações que põem em xeque a credibilidade e a urgência da vacinação, desprezando mais de dois séculos de avanço científico e tecnológico 

Quarenta países já iniciaram a vacinação antes do Brasil. “Nosso tempo hábil já passou há muito tempo”, afirma o EPPGG e sanitarista Claudio Maierovitch em entrevista à Carta Capital. Foi-se o tempo para o desenho de um plano nacional de enfrentamento à pandemia, tendo a vacina como componente. Até mesmo a compra de seringas fracassou. O diálogo entre quem precisava agir juntos não houve, foi substituído por disputa, como exemplifica Maierovitch ao citar o atrito entre o governador de São Paulo, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro.

A federação ficou à deriva, analisa a professora de administração pública da FGV Gabriela Lotta em artigo para o Estadão em 1º/1. O caminho trágico já se desenhava desde o início da pandemia, com a instabilidade no comando do Ministério da Saúde, que terminou nas mãos de um militar que desconhecia o sistema de saúde brasileiro - como ele próprio revelou.

O Brasil tinha plenas condições de se destacar no combate à covid-19. O país enfrenta epidemias de dengue e malária todo ano, e é reconhecido pela Organização Pan-americana de Saúde pela sua atuação. A reação do Brasil à epidemia do vírus zika demonstrou a capacidade do país lidar rapidamente com doenças novas. O Programa Nacional de Imunização é referência mundial, com coberturas superiores a 95% do público-alvo, o SUS reforça essa capacidade vacinal, com capilaridade e buscas ativas de equipes de saúde da família, o Bolsa Família entra junto na estratégia, com a vacinação como condicionante. Não bastasse isso, a integração com políticas de ciência e tecnologia coordenadas pelo Ministério da Saúde impulsionou o desenvolvimento da área da saúde no Brasil.

Mas anos de experiência em gestão foram deixados de lado. Em vez de qualificados quadros de gestores da área de saúde, o Ministério da Saúde, já em seu terceiro ministro durante a pandemia, é coordenado por militares com pouca experiência no setor. Prefeitos e governadores tomaram ações por conta própria, o que, ressalta Lotta, resulta no aumento de desigualdades. “Para cada grande capital que pode vacinar sua população, há 4 pequenos municípios que não podem. No Brasil, 88% dos municípios têm menos de 50 mil habitantes, 70% menos de 20 mil. E são estes que acumulam falta de capacidade técnica, desemprego e pobreza”, afirma a professora.

Nesse cenário, clínicas privadas tomam a dianteira na vacinação, em uma corrida que expõe a falha do Ministério da Saúde, convertida em oportunidade comercial. Do ponto de vista individual, isso pode ser um alento para aqueles com condições de acesso à vacina paga. Entretanto, tratando-se de uma pandemia em um país desigual como o nosso e de um vírus em mutação, a vacinação universal - ou de parcela significativa da população, a começar pelos mais vulneráveis - é que deve ser entendida como política pública.

Como propõe a economista Monica de Bolle na revista Quatro Cinco Um, “cabe ao Estado assegurar o acesso universal às vacinas para que se alcance a imunidade coletiva e, no caso específico da covid-19, estabelecer e fazer respeitar aqueles que terão acesso prioritário a elas, dada a sua escassez”. Caso contrário, a vacinação torna-se uma corrida para ser o primeiro da fila, cada um por si, sem o senso de bem comum fundamental para uma sociedade democrática e civilizada.

Como se a inação federal não fosse problema o bastante, um novo obstáculo foi criado na noite do dia 31 de dezembro de 2020: o veto de Bolsonaro, em edição extra do Diário Oficial da União, à blindagem que o Congresso aprovara para os gastos com ações vinculadas à produção e disponibilização de vacinas contra o coronavírus e a imunização da população brasileira - a proteção aos gastos com a Defesa, no entanto, foi mantida.