Negócios de Impacto em tempos de Covid: O papel do Estado
Autor: Lucas Ramalho Maciel[1]
Os negócios de impacto são empreendimentos extraordinários, que geram lucro ao mesmo tempo em que contribuem para resolver problemas sociais e ambientais. Embora o Brasil tenha entrado tardiamente nessa área, em pouco tempo conseguiu se transformar em uma referência positiva no setor. Uma das razões é o envolvimento do Estado a partir da criação da Enimpacto, a Estratégia Nacional pelos Investimentos de Impacto, cuja governança é realizada por um comitê formado por órgãos públicos e por atores da sociedade civil.
Apesar das limitações de orçamento e instrumentos, a Enimpacto tem conseguido mobilizar o ecossistema e envolver o poder público nessa agenda, mostrando que arranjos inovadores de governança podem ser decisivos no alcance de resultados de políticas públicas. Com a pandemia de Covid-19, o governo é pressionado a dar respostas à altura dos desafios. Algumas iniciativas estão sendo implementadas, mas precisaríamos de mais e melhores políticas públicas para diminuir a quantidade de negócios de impacto que não sobreviverão à crise. O que ocorre no comitê da Enimpacto é apenas o reflexo, em menor dimensão, daquilo que ocorre no governo como um todo.
Antes de problematizar o papel do Estado, é necessário demonstrar a importância do tema. Um dos exemplos mais emblemáticos de negócio de impacto é a Moradigna, uma empresa que reforma barracos na favela por meio de um modelo de negócio altamente inovador, acessível à população da base da pirâmide. Outro exemplo é a Aravind, uma empresa indiana que realiza cirurgias de catarata à baixíssimo custo para populações pobres por meio de um modelo de negócio com subsídios cruzados. Em todo o mundo, crescem iniciativas dessa natureza, lideradas por pessoas que perceberam que os problemas sociais e ambientais tornaram-se muito complexos para serem resolvidos apenas com recursos de governos e da filantropia. São iniciativas que se somam aos investimentos públicos na construção de um mundo menos desigual e mais sustentável.
Os negócios de impacto articulam-se com as iniciativas da Organização das Nações Unidas (ONU) de promoção do desenvolvimento sustentável. Um dos grandes avanços da Agenda 2030 em relação à agenda dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio foi reconhecer a importância e o papel da iniciativa privada para o alcance de suas metas. Se antes o foco estava nas iniciativas de governos, agora há o nítido reconhecimento da importância da iniciativa privada, e os negócios de impacto são uma forma promissora de engajar o setor privado na resolução dos problemas sociais e ambientais que acometem a humanidade.
Até o último mapeamento, realizado pela Pipe Social em 2019, o Brasil contava com pouco mais de mil negócios de impacto. Ainda não sabemos com exatidão os reais efeitos que a crise irá causar na vida das pessoas e dos setores econômicos, mas uma coisa é certa: os tempos pela frente serão muito duros. O vírus pode fazer com que o PIB brasileiro retraia até 7% em 2020. O desemprego pode chegar a 23%, o dobro antes da pandemia. A crise tende a afetar de forma muito negativa as atividades dos negócios de impacto no Brasil.
Um estudo conduzido pelo Sistema B com mais de 500 empreendimentos de impacto na América Latina concluiu que metade dos negócios de impacto em operação podem encerrar suas atividades, caso nenhuma medida saneadora seja realizada nos próximos 30 a 60 dias. Além disso, os efeitos negativos em todo o ecossistema colocam em risco ações para os próximos dez anos e, por consequência, o compromisso do país com a Agenda 2030 da ONU. É urgente e necessário que o Estado assuma medidas concretas de ampliação de acesso a programas sociais, da proteção ao emprego, apoio às empresas e do aumento da capacidade de atendimento do sistema de saúde.
A Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (Enimpacto), uma articulação de 18 órgãos públicos e 10 entidades da sociedade civil e da iniciativa privada, possui o objetivo de promover ações de fomento ao setor de investimento e de empreendedorismo de impacto. Em razão da pandemia, quatro medidas foram acionadas para minimizar os efeitos negativos da crise. A primeira foi a realização de edital para conceder prêmios em dinheiro a iniciativas inovadoras – uma forma de injetar recursos em um momento crítico da economia. A segunda é a apresentação de empresas inovadoras para bancas de governo, uma tentativa de dar escala e tração à modelos de negócios que podem auxiliar o Estado, tais como fabricação de respiradores mais econômicos, identificação e diagnóstico da doença, plataformas de apoio a populações carentes etc. A terceira foi a criação de linhas de crédito com taxas de juros mais acessíveis, uma tentativa de oferecer recursos em um momento de retração econômica. Por fim, a estruturação de um Fundo de Impacto com recursos de bancos públicos, uma iniciativa que poderá alavancar os recursos disponibilizados ao setor.
A despeito dos esforços, a avaliação é que as medidas ainda são insuficientes. Os recursos estão abaixo do necessário e o acesso ao crédito não será possível para uma parcela significativa do setor, que não possui histórico de crédito, formalização e condições de garantia. Os editais públicos, bem como a apresentação para bancas de governo, embora constituam iniciativas importantes, não são uma resposta à altura do problema, que demanda ações mais amplas e estruturantes. A criação do fundo de impacto, que poderia ser uma das ações estruturantes, carece de recursos mais robustos e dificilmente conseguirá operacionalizar antes de 2021.
Apesar das dificuldades e insuficiências, é impossível imaginar a redução dos malefícios da crise sem o Estado. O poder público cumpre um papel central, sem o qual, infelizmente, será impossível sair da crise atual. O caso do Sistema Único de Saúde (SUS) é emblemático. No atual contexto, institucionalizar o compromisso com um sistema único e universal de saúde é a medida mais concreta do Estado no desenho e implementação de políticas estruturais para mais qualidade de vida para seu povo.
A estrutura de governança da Enimpacto, até o momento, não tem sido suficiente para mobilizar respostas efetivas que permitam aos negócios de impacto atravessarem a crise. O problema parece estar mais relacionado às diretrizes do governo do que à estrutura do comitê, um arranjo híbrido e inovador que envolve o Poder Legislativo, sociedade civil, setor privado, entidades filantrópicas e o próprio Poder Executivo, representado por vários órgãos. Precisamos avançar mais, com engajamento mais efetivo dos diversos entes públicos na busca de soluções inovadoras e escaláveis para o enfrentamento da crise.
Um ecossistema de impacto precisa de um ambiente institucional habilitado a dar sobrevida ao setor, com instrumentos, instituições e políticas públicas capazes de conferir o apoio necessário em momentos de calamidade. Seriam necessários créditos mais baratos e mais amplos; programas de proteção ao emprego mais eficientes; mobilização, fortalecimento e parceria com organizações e entidades sociais e assistenciais; comunicação mais eficiente; renda mínima universal em escala e valor adequado; entre tantas outras ações. Precisamos de respostas emergenciais, mas também para o período de retomada pós crise, pois, certamente, sairemos dessa crise um país ainda mais desigual. Poder público e setor privado, via negócios de impacto, podem, juntos, responder à altura aos desafios de hoje e o que estão por vir.
[1] Engenheiro agrônomo, especializado em gestão governamental, mestre em agronegócios com ênfase em agricultura familiar, EPPGG da 14ª turma e atualmente trabalha na Subsecretaria de Inovação do Ministério da Economia.