Negro é visto como inimigo interno na formação policial: entrevista com EPPGG Antonio de Castro
Na última semana, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) se viu exposta em 2 casos reveladores de violência e descontrole das forças de segurança pública. Na cidade do Rio de Janeiro, a PRF participou da chacina que deixou ao menos 23 mortos na Vila Cruzeiro. Em Sergipe, num caso bárbaro de tortura até a morte, policiais rodoviários vitimaram Genivaldo de Jesus Santos, homem negro de 38 anos, no município de Umbaúba.
Esses episódios não são casos isolados. Em entrevista com o EPPGG Antonio de Castro, que é doutorando em Sociologia pela UnB e pesquisador da área de racismo, branquitude e relações sociorraciais no Brasil, buscamos compreender a conjuntura em que se dá, cada vez com mais frequência e de forma mais grave, as situações de violência realizada por agentes do Estado — e que atinge de forma direta a população mais pobre e negra. Castro também aponta políticas públicas que podem ser desenvolvidas ou aperfeiçoadas para mudar esse quadro.
A que você atribui esses recentes casos de violência policial?
Infelizmente, os casos recentes de violência policial que resultaram na chacina da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, e no assassinato do Genivaldo, em Sergipe, não são exceções na história do povo negro no Brasil. Há muito tempo, desde o momento em que chega no país, para servir como escravo, o povo negro é submetido a esse tipo de tratamento brutal, bárbaro e desumano que ceifa vidas e mais vidas.
Só para se ter uma ideia, entre 2016 e 2018, aconteceram 242 chacinas no Brasil com participação de forças policiais ou parapoliciais (grupos de extermínio que contavam com participação de policiais). Isso resultou em 1.175 vítimas fatais. Pretos ou brancos, favelados, mortos. Nesse número, contabilizam-se mais de 90% de negros e negras.
A prática da brutalidade, da barbárie pela força policial, ou seja, pelas forças de segurança do Estado contra o povo negro é um elemento recorrente na nossa história. O índice de letalidade no Brasil se mantém altíssimo, um dos maiores do mundo. Um jovem negro morre a cada 23 minutos no país, onde também a população carcerária é crescente, a terceira maior do mundo — e 70% dela é formada por negros.
Então, estamos falando de um tratamento sistêmico, que é desumano, bárbaro, brutal, diria até mesmo genocida, contra o povo negro. Isso, em tempos “normais”. Já em tempos como o que estamos vivendo, em que o Presidente da República e as autoridades que comandam as forças policiais fazem declarações públicas estimulando esse tipo de tratamento, atos racistas, atos violentos, a tortura, o armamento da população, estimulando o valor da morte, isso se torna ainda mais grave e acintoso. É uma situação em que o “guarda da esquina”, no caso, o “guarda da estrada”, ou o policial de qualquer lugar se sente mais autorizado a agir ao arrepio da lei.
Os atos de barbaridade contra o povo negro, que vinham sendo praticados às sombras, no calar da noite, nas madrugadas, às escondidas, podem ser realizados em plena luz do dia, sob os holofotes de celulares que transmitem os fatos em redes sociais porque o agente policial está com a ideia de impunidade. Porque aquele contra o qual ele está agindo brutalmente, sem respeitar a lei, é um ser que não merece tratamento como humano. E isso acontece porque o negro na nossa sociedade, dada a condição de racismo estrutural que nós vivemos, tem um valor abaixo da condição de humano.
E isso não é só em relação à política de segurança pública, o povo negro é tratado com humilhação em quase todos os outros âmbitos da vida social. Em resumo, a razão desses acontecimentos recentes de violência policial tem a ver com esse fundo histórico, essa condição estrutural em que o negro é colocado como subserviente, humilhado, precário, subumano. E também guarda relação com a política atual, com o fato que nós temos na direção das instituições policiais e na Presidência da República pessoas que estimulam esse tipo de comportamento.
Ainda em complemento a esse quadro é importante lembrar das chacinas que vivemos nos últimos tempos. Desde Vigário Geral e da Candelária em 1993, nós tivemos as chacinas da Baixada Fluminense em 2005, a Chacina da Chatuba em 2012, a Chacina do Cabula, em Salvador, em 2015. E, no campo, o processo de violência é ainda mais feroz quando lembramos do Massacre de Eldorado dos Carajás em 1996, como um marco da violência policial no campo, sendo que é possível afirmar que a violência no campo contra negros e negras continua avançando, muito por ação de milícias armadas pelos latifundiários, mas que agem com certa complacência ou até acobertamento pelas forças policiais.
Como políticas de recrutamento, formação e treinamento das polícias poderiam mitigar essa situação?
As políticas de recrutamento, formação e treinamento das polícias podem cumprir um papel importante em prevenir esse tipo de acontecimento, mas por esses eventos terem fundamentos muito mais profundos, como citei aqui anteriormente, eles podem ser remediados, limitados, só que não serão completamente eliminados. Mesmo considerando essa limitação, ao meu ver, esta deve ser a tônica das autoridades das corporações policiais: garantir um processo de recrutamento que evite a entrada nas polícias de pessoas que não tenham a capacidade ou condições de garantir a tranquilidade para o manuseio da arma e para o diálogo com a população para o qual está servindo, ou seja, prestando um serviço público de segurança. Portanto, o objetivo deve ser recrutar profissionais que estejam preparados, com capacidade cognitiva e psíquica, reunindo condições de desempenhar sua função fazendo o uso legal do poder que lhe é investido de estar armado, ter a capacidade de usar uma força letal com parcimônia, na prestação dos serviços para a população. Isso significa agir conforme a lei, agir em respeito aos direitos do cidadão, em especial, agir em respeito aos direitos humanos.
Do mesmo modo, é preciso de uma mudança profunda na formação e no treinamento das corporações policiais para evitar coisas do tipo, como vem sendo divulgadas nas redes sociais, em que ex-policiais, professores em cursinhos para a PRF, fazem achincalhamentos com práticas de brutalidade, de desrespeito aos direitos humanos, de violência ilegítima e ilegal, usando exemplos do que praticaram enquanto na atividade policial. Na prática, nos próprios cursinhos preparatórios para os concursos públicos, você tem professores estimulando esse tipo de comportamento, que é uma dinâmica também reforçada nas academias de polícias.
Como se as corporações policiais estivessem sendo formadas para uma guerra contra o inimigo interno, e esse inimigo interno na nossa história — desde a escravidão e, especialmente, depois dela — é o negro, o favelado, o povo da periferia. O negro, aqui, visto como a espécie ameaçadora e de inimigo interno para os quais as forças policiais são preparadas para combater com força total, inclusive, letal, ao arrepio da lei. É como se tivesse uma lei para a sociedade branca, da classe média branca, e um mundo de não-lei, um estado de exceção para o povo negro. É como se o lema da nossa bandeira significasse ordem para os pretos e progresso para as elites, para a classe média branca, e as corporações policiais, por sua vez, atuando para proteger esse lema.
É fundamental mudar essa lógica de formação baseada no combate a esse inimigo interno, com base numa abertura excepcional da lei para agir em relação a esse inimigo interno que é visto como não merecedor de respeito, de direitos humanos, de cidadania.
Então, é preciso mudar essa orientação para a formação de uma polícia respeitadora dos direitos humanos, de uma polícia que está prestando um serviço público de extrema necessidade para a sociedade e que precisa tratar todos iguais perante a lei, não apenas em relação ao tratamento isonômico entre brancos e negros, entre a classe média que vive no asfalto e os favelados que vivem nos morros, mas a um profundo respeito aos direitos humanos.
A função da polícia na sociedade moderna democrática, e no Estado democrático de direito, é justamente o de garantir que todas as pessoas tenham seus direitos fundamentais, que são constitucionais, respeitados, obedecidos e cumpridos. E não ser o oposto, um instrumento de violência contra os setores mais vulneráveis e discriminados da população.
Você identifica algum tipo de política antirracista que poderia contribuir para que esses casos não voltem a se repetir?
Acredito que para evitar e por fim à brutalidade policial contra os negros, por fim ao genocídio que é praticado no Brasil contra o povo negro e, pior, com participação do Estado, é preciso um conjunto de políticas que apontem para além de uma ação sobre as polícias exclusivamente.
É preciso desenvolver um conjunto de ações de reforma da polícia, que passa, como já disse, por uma remodelagem, uma reorientação completa do processo de formação, de treinamento e de recrutamento, no sentido de colocar o respeito aos direitos humanos e de uma prestação de serviços de segurança em diálogo com a população, como também é necessário o adensamento do controle social sobre a ação policial, considerando que as corporações policiais são extremamente refratárias a algum tipo de controle social.
A incorporação das câmeras nos uniformes de todos os policiais é uma medida importante, que pode contribuir para desestimular esse tipo de prática. Estudos têm mostrado que, em geral, a ação policial quando resulta na morte de um preto favelado, quando vai à Justiça, o policial é absolvido sob o argumento que o óbito ocorreu em função de uma resistência ou uma reação por parte daquele que foi morto, e que a ação foi uma resposta legítima do policial. Esse é o tipo de exemplo que o uso de câmera no uniforme pode evitar, ao gerar provas materiais para punir os responsáveis.
Para além disso, é preciso políticas mais amplas, de inserção social, de inclusão social do povo negro para que seja possível alcançar postos de destaque na vida social. Não me refiro nesse caso a ideia de representatividade, em que um ou outro negro tenha ascenção social. São políticas públicas que permitam que o povo negro saiam do atoleiro da pobreza e da miséria a que ele tem sido secularmente condenado.
São políticas públicas de inclusão e ascensão amplas, como as cotas para negros e negras ao acesso à universidade, por exemplo. Ou a intensificação de cotas nos concursos para acesso de negros e negras ao serviço público, indo muito além da lei que entrou em vigor em 2014 e vence em 2024, que permitiu uma cota de 20%.
Para tanto, é preciso mudar a própria condição do negro na sociedade, para que de fato essa cultura de desumanização da população negra, dessa visão do negro enquanto ameaça interna seja alterada. Nesse sentido, é preciso superar a profunda desigualdade que existe na sociedade brasileira, que empurra o povo negro para os andares inferiores, ou para o subsolo da pirâmide social.
Em relação a políticas mais focadas para a reestruturação policial, é preciso acabar tanto com a militarização das polícias, como com a polícia civil armada fazendo policiamento ostensivo, quanto é preciso desmilitarizar a cultura de formação das polícias civis, não militares. Me refiro ao fato delas não serem militares, mas estarem sendo formadas num processo de treinamento para combate de um inimigo, dentro de uma estrutura de quem vai para a guerra. Só que é uma guerra contra uma parte da população, que são os negros.