Colares que bipam e bastões coloridos e o novo normal nos museus

Autor: Raul Fontoura*

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Ao lado do turismo, a economia criativa tem sido um dos setores mais impactados pela pandemia de Covid-19. Quando os países, regiões e cidades começaram a adotar medidas de distanciamento social como forma de contenção do novo coronavírus, os museus estavam entre as primeiras instituições a suspender suas atividades. No final de maio, a UNESCO e o Conselho Internacional de Museus (ICOM) lançaram seus primeiros relatórios sobre o impacto da Covid-19 no setor. De acordo com a UNESCO, cerca de 90% dos 98 mil museus do mundo fecharam suas portas ao público em decorrência das medidas de contenção.[i] Mais de um em cada dez museus talvez não voltem a abrir mesmo depois da crise, segundo o levantamento do ICOM.[ii] A perspectiva de fechamento definitivo ameaça 24% dos museus da África e 39% dos museus dos países árabes, regiões onde já são poucos e mais frágeis. Estes dados dão uma ideia do impacto e dos desdobramentos da pandemia de Covid-19 no campo museal.

O Brasil tem cerca de 3.800 museus.[iii] Muitos alcançaram excepcional visibilidade, e para isso contribuíram seu nível de excelência e acervo de relevância internacional. O MASP, em São Paulo, é hoje considerado o museu de arte mais importante do hemisfério sul, e Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, o maior museu a céu aberto do mundo. Em Belém, o Museu Paraense Emílio Goeldi é uma referência internacional na produção e difusão de conhecimento sobre a Amazônia. O Instituto Ricardo Brennand, em Recife, foi presença frequente no agora extinto ranking anual dos 25 melhores museus do mundo do Traveller´s Choice Award, da TripAdvisor. Isso apenas para nomear algumas instituições, de uma lista extensa.

Mas os museus-celebridade são apenas uma das faces do campo museal brasileiro. Por todo o país se espalham instituições dedicadas à preservação da memória, produção de conhecimento e reflexão sobre o futuro das mais diversas comunidades e saberes. O Museu dos Povos Indígenas da Ilha do Bananal - Iny Heto promove o encontro e a difusão das culturas Javaé e Karajá. O Museu de Favela preserva a memória das comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. O Museu do Milho rememora o passado rural do oeste catarinense.

O Museu do Sexo das Putas está sendo construído em Belo Horizonte para desmistificar a prostituição, e prevê a instalação de uma biblioteca pública aberta 24 horas, voltada para o público vulnerável. Uma passagem rápida pela lista de museus brasileiros é reveladora da imensa diversidade temática do campo museal no país. A língua portuguesa, o futebol e o carnaval de Salvador têm seus museus. Portinari, Villa Lobos, Rui Barbosa e Jorge Amado têm seus museus. Jorge Amado, aliás, tem dois. O transporte ferroviário, o automóvel e o telefone têm seus museus.

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Assim como em tantos outros domínios, também no campo museal o Brasil é um território não só de diversidade, mas de contrastes. No mesmo país onde se investiu 215 milhões de reais na construção do Museu do Amanhã,[iv] inaugurado em 2015, a falta injustificável de recursos para manutenção predial levou, menos de três anos depois, ao incêndio trágico que consumiu o Museu Nacional, até então o maior de história natural da América Latina. O país tem sido presença constante na lista das exposições de arte mais visitadas do mundo. Em 2019, diferentes mostras do Centro Cultural Banco do Brasil ocuparam os três primeiros lugares e mais duas posições no ranking das vinte exposições mais visitadas mundialmente. Além do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, apenas cinco cidades figuraram na lista: Tóquio, Washington D.C., Paris, Amsterdam e Nova York.[v] Ainda assim, há apenas uma década, 70% dos brasileiros nunca tinham ido a um museu ou centro cultural.[vi]

Como ao redor do mundo, no Brasil as instituições museais são muito diversas na temática, porte, número de visitantes e relação com a comunidade, bem como no modelo de gestão e origem dos recursos. Em função dessas diferenças, o impacto da pandemia de Covid-19 deve variar enormemente entre os museus. No debate sobre a repercussão da crise no setor, os temas que mais têm se destacado são as medidas de proteção necessárias para a reabertura dos museus, a ampliação da oferta digital e o impacto econômico da pandemia.

Reabertura e um novo normal

O controle do avanço da Covid-19 tem permitido a retomada gradual e cautelosa das atividades em um número crescente de países. O novo coronavírus, no entanto, continua em circulação, e parece ser consenso que a crise sanitária será de fato superada apenas a partir do desenvolvimento de uma vacina eficaz. Isso implica que a retomada das atividades deverá ser acompanhada de medidas de distanciamento social e proteção sanitária que, por algum tempo, serão parte do novo quadro de normalidade pós-crise.

Não há protocolos estabelecidos ou normas específicas que certifiquem que um museu está em condições de reabrir. As exigências estabelecidas pelos governos e as orientações emitidas pelas entidades profissionais e de representação do setor compõem um repertório abrangente de soluções, a partir do qual os museus têm definido suas estratégias de reabertura, em um ambiente de intensa cooperação e troca de informações. O que está em pauta é a necessidade de oferecer uma resposta ao que Alessandro Martini, curador do Il Giornale de l’Arte, resumiu como sendo o “desafio de dar novamente as boas vindas aos visitantes em meio a uma pandemia, garantindo que mantenham uma distância segura dos funcionários, uns dos outros e de superfícies comuns”.[vii] A Ásia Oriental começou a reabrir seus museus ainda em março, a Europa no final de abril, a América do Norte e a Oceania em meados de maio. Essas primeiras experiências dão uma indicação de como será o novo normal.

O maior impacto no funcionamento dos museus deve vir do conjunto de redefinições operacionais e intervenções arquitetônicas que têm por objetivo controlar o fluxo de público. Os museus estão sendo obrigados a recalcular o número máximo de visitantes e a encontrar meios de garantir que não entre gente demais e que as pessoas que estão dentro, ou aguardando para entrar, permaneçam afastadas o suficiente umas das outras. É mais desafiador do que talvez possa parecer. Em 22 de abril, os museus de Berlim receberam sinal verde do governo para reabrirem a partir da primeira semana de maio.[viii] Quatro dias depois, no entanto, em entrevista à agência de notícias DPA, Hermann Parzinger, presidente da Fundação do Patrimônio Cultural da Prússia (SPK), anunciava uma perspectiva bem mais cautelosa: “No momento, é difícil dizer quais museus poderemos abrir. Achamos que poderemos abrir uma ou outra casa durante a primeira quinzena de maio, o mais tardar até meados de maio. Reabrir um museu não é trivial”.[ix] A SPK administra um conjunto impressionante de 27 instituições culturais, entre museus, bibliotecas, arquivos públicos e institutos de pesquisa, incluindo os cinco museus da Museumsinsel, em Berlim, que receberam mais de três milhões de visitantes em 2019.[x]

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Medidas como a compra obrigatória de ingressos online com horário programado de entrada, marcações de piso, percursos unidirecionais de visitação e limitação do tempo de permanência são algumas das opções que vêm sendo adotadas, com maior ou menor frequência, à medida que os países avançam na reabertura de seus museus. O repertório do distanciamento pós-lockdown também inclui a interdição dos espaços mais confinados, a restrição do uso de elevadores e o emprego das equipes de segurança e do circuito interno de televisão para vigiar a distância interpessoal e monitorar os fluxos de visitantes. No Complexo da Catedral de Florença, na Itália, reaberto ao público em 22 de maio, os visitantes recebem um colar eletrônico, primeiro do gênero no mundo, que bipa, vibra e pisca, alertando sobre a aproximação excessiva de outra pessoa.[xi] No berço do humanismo renascentista, uma imagem talvez particularmente distópica do cotidiano sob o impacto da Covid-19.

Ao distanciamento social, somam-se medidas de proteção pessoal, higiene e redução das superfícies de contato comum. Entram as máscaras, checagens de temperatura corporal, dispensers de desinfetante para as mãos e placas de acrílico separando público de atendentes. Saem bancos e bebedouros, e cafés e chapelarias continuam fechados. Estas têm sido algumas das medidas usuais. Invariavelmente, o retorno das atividades tem exigido dos museus a adoção de protocolos novos de limpeza e de manutenção dos sistemas de climatização, cujo impacto nos custos operacionais tende a não ser desprezível. A eliminação de áudio-guias, touchscreens e materiais impressos os tem obrigado a repensar os suportes de informação e comunicação. O Instituto Giacometti, um dos primeiros museus a reabrir em Paris, em 15 de maio, substituiu os fones de ouvido por um áudio-guia virtual que pode ser acessado do celular dos visitantes via QR Code.[xii] Uma questão à parte, as instalações interativas talvez tenham que esperar por dias melhores.

Na perspectiva do público, independentemente do conjunto específico de medidas de proteção sanitária adotado em cada instituição, parece certo que, no mundo sob o impacto da pandemia, a visita a um museu será uma experiência de natureza bem distinta do que costumava ser. No entanto, apesar das exigências sanitárias serem semelhantes, a diversidade intrínseca do campo museal deve se ver refletida nas respostas à crise. A Scuderie del Quirinale, em Roma, e o Museu Estadual de Arte Moderna de Brandenburg (BSMK), em Cottbus, na Alemanha, oferecem uma perspectiva interessante do quão diversas podem ser as experiências de retorno aos museus sob os efeitos da Covid-19.

Em 5 de março, depois de três anos de planejamento e preparação, a Scuderie del Quirinale inaugurou a megaexposição Rafael 1520-1483: o mundo em uma noz, maior mostra já realizada sobre a obra do mestre superstar do renascimento italiano. Com cerca de 70 mil ingressos já vendidos online, a exposição foi fechada ao público três dias depois, em decorrência do lockdown nacional imposto pelo governo italiano.[xiii] Em 2 de junho, a Scuderie reabriu suas portas. Para visitar a mostra, que reúne mais de duzentas pinturas, desenhos e outros trabalhos, incluindo obras cedidas pelo Louvre, Museu Britânico e uma respeitável lista de outras instituições, o público é dividido em grupos de seis pessoas – com saídas a cada cinco minutos – e escoltado por um segurança ao longo de toda a visita, cronometrada para assegurar que os 80 minutos disponíveis não sejam extrapolados.[xiv] Mario de Simone, presidente da Scuderie, afirma que, se houver procura, ele pode vir a estender o horário de visitação noite adentro, até 2h, 3h da manhã. [xv]

Em contraste com os novos controles de fluxo de público da Scuderie, o texto que anuncia a reabertura do BSMK, assinado pela diretora da instituição, Ulrike Kremeier, defende que, em um museu, “se uma pessoa passa 20 segundos ou três horas em pé, andando ou sentada em frente a uma obra de arte, ou sem olhar para nenhuma, é uma decisão dela, da mesma forma como é de acordo com seus próprios critérios que ela se move no espaço expositivo”. [xvi] Para Kremeier, “é também a relação direta, física e autodeterminada com a obra de arte que define a singularidade da experiência de arte visual”.

O BSMK foi um dos primeiros museus a reabrirem suas portas na Alemanha, no começo de maio. A instituição, que abriga a maior coleção do país de arte da Alemanha Oriental, além de reinaugurar o acesso ao acervo e exposições temporárias, preparou intervenções artísticas que propõem uma reflexão sobre as implicações da Covid-19.[xvii] No foyer do museu, um vídeo discute trabalhos de artistas e arquitetos que evocam o tema da proteção pessoal em público. Boy Meets Girl—From Mars (Weggee, c.a. 1955), por exemplo, mostra o beijo de um casal usando capacetes esféricos transparentes, e Großer Raum (Walter Pichler, 1966-67) imagina uma estação de trabalho dentro de uma grande bolha plástica. Também no foyer, os visitantes, em duplas, recebem fitas e bastões coloridos medindo 1,5 metro de comprimento, a distância mínima que, conforme determinação do governo alemão, pessoas que não moram juntas devem manter entre si. Ao longo do percurso pelo museu, o público é confrontado com perguntas sobre o novo normal pós-Covid-19: qual a sensação da distância de 1,5 metro? A relação entre espaço público e espaço privado está mudando? A nossa percepção do homem e da arte muda à medida que internalizamos uma maior distância física entre nós?

Se o BSMK entende que é seu papel instigar o público a refletir sobre o sentido e as consequências da pandemia em suas vidas enquanto a crise se desenrola, o Museu Nacional de Antropologia (MNA), em Montevidéu, no Uruguai, e o Museu do CDC David J. Sencer, em Atlanta, nos Estados Unidos, estão se preparando para contar a história da pandemia no futuro. O MNA lançou o projeto “Era uma vez uma pandemia”, que está recolhendo testemunhos e fotos de objetos e situações que simbolizam o cotidiano durante a Covid-19, para contar como a pandemia mudou a vidas das pessoas.[xviii] O museu dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), por sua vez, está reunindo documentos, imagens, objetos e relatos das equipes de campo para reconstituir, no futuro, a história do avanço e do combate à pandemia, na perspectiva da saúde pública.

Se colares que bipam e bastões coloridos ilustram mudanças que veremos a Covid-19 levar aos museus, o aspecto desse novo normal que mais deve impactar a experiência de visitação – e o funcionamento das instituições - é a redução do público, pelo menos nos museus acostumados aos grandes fluxos de visitação. O Palácio de Schönbrunn, em Viena, museu mais visitado da Áustria, reabriu em meados de maio com capacidade limitada a 1.750 visitantes por dia, frente a um pico de movimento diário pré-pandemia de 10 mil pessoas.[xix] O Museu Van Gogh, em Amsterdam, segundo mais visitado da Holanda, reabriu no início de junho com capacidade limitada a 700 pessoas por dia, um décimo da média de visitação neste período do ano.[xx] O Museu do Palácio, em Beijing, uma das atrações mais visitadas da China, reabriu parcialmente para as comemorações do 1º de maio.[xxi] Caso as medidas de restrição adotadas no pós-lockdown permaneçam inalteradas, o museu deve ver seu público anual reduzido de 19 milhões para dois milhões de visitantes.[xxii] As primeiras métricas sugerem que, mesmo adotando as dispendiosas medidas de segurança sanitária, os museus de grande porte podem ser obrigados a reduzir seu público entre 80% a 90% até que o distanciamento social possa ser revogado. É um corte brutal. 

O acesso aos acervos é certamente o mais visível, mas não o único elemento da relação dos museus com o público. Exposições temporárias, programas educacionais, apresentações e debates, programas de pesquisa e publicações são instrumentos que dão materialidade à missão dos museus de produzir e difundir conhecimento. Como regra geral, os museus que já reabriram suas galerias têm mantido suspensas as visitas escolares e os eventos públicos, e mais de 80% dos museus ao redor do mundo preveem a redução de seus programas.[xxiii]

O quadro da pandemia está em evolução constante, e as estratégias de enfrentamento estão sujeitas a revisão a qualquer momento, na direção seja do recrudescimento ou do relaxamento das medidas de controle. Isso se aplica também às instituições museais. O Museu Nacional de Arte Moderna e Contemporânea (MMCA), em Seul, na Coreia do Sul, reabriu em 4 de maio.[xxiv] Menos de um mês depois, um novo surto de Covid-19 na capital coreana o obrigou a fechar novamente.[xxv] O Museu de Auckland, na Nova Zelândia, reabriu em 25 de maio, com todo um conjunto de medidas de distanciamento social e proteção sanitária, incluindo, conforme exigência governamental, um sistema de entrada digital que permite o rastreamento de contato dos visitantes.[xxvi] Duas semanas depois, o governo neozelandês anunciou que o coronavírus havia sido eliminado do país.[xxvii]

No Brasil, os museus permanecem fechados. No começo de junho, o Ibram divulgou um conjunto de recomendações de segurança para orientar a preparação para reabertura, quando as condições de evolução da pandemia no país o permitirem.[xxviii] O documento, elaborado com apoio do ICOM-Brasil e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), está alinhado com as diretrizes adotadas internacionalmente.

Ensaio para uma nova paisagem digital

O distanciamento social imposto pela pandemia de Covid-19 resultou no aumento substancial da demanda por serviços culturais online. Os museus adaptaram-se rapidamente, ampliando e diversificando sua presença digital. Duas frentes se destacam: a atuação mais intensa nas redes sociais e as atividades desenvolvidas especificamente para o período de lockdown. A profusão, diversidade e originalidade das iniciativas demonstraram a resiliência e força criativa do setor. A pandemia, no entanto, também expôs a fragilidade estrutural das instituições museais no que tange aos recursos dedicados à produção de oferta digital. Dos museus consultados pelo ICOM,[xxix] apenas 18,3% têm pessoal dedicado exclusivamente às atividades digitais e apenas 5,4% dedicam mais de 15% de seu orçamento a atividades digitais e comunicação.

A previsão de analistas de tendências e consultorias de mercado é que, mesmo superada a fase mais aguda da crise, essa demanda deve se manter em patamares muito superiores aos do contexto pré-pandemia. A crise, portanto, deve acelerar a tendência, já em curso, de valorização do patrimônio digital. Além da ampliação da oferta, também está na pauta dos museus a exploração de novas fronteiras para a experiência digital, para além dos acervos digitalizados e tours virtuais nos formatos hoje difundidos. Essa agenda, no entanto, vai requerer uma sensibilidade especial para a questão da desigualdade digital, consonante com a função social que caracteriza a atividade museal.

Nuvens de chumbo

Em consequência da pandemia de Covid-2019, a economia mundial deve sofrer uma contração de -3% em 2020, muito superior à da crise financeira de 2008-2009, conforme estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI).[xxx] Considerando um cenário favorável de contenção da crise no segundo semestre e eficácia das medidas de estímulo fiscal adotadas pelos países, o FMI projeta um aumento de 5,8% do PIB mundial em 2021, mas pondera que os riscos de consequências ainda mais severas são substanciais. Em estudo recém-publicado pela Finance&Development, os economistas Òscar Jordà, Sanjay R. Singh e Alan M. Taylor, da Universidade da Califórnia, examinaram o impacto econômico de 15 eventos pandêmicos ao longo da história, da Peste Negra (1331-1353) à pandemia de H1N1 (2009-2010). “O impacto da pandemia de Covid-19 na atividade econômica nos últimos meses é apenas o começo da história”, afirmam os autores, “Enquanto o rápido e inédito colapso da produção, comércio e emprego pode ser revertido à medida que a pandemia se atenuar, dados históricos sugerem que as consequências de longo prazo podem persistir por uma geração ou mais.” [xxxi]

As consequências econômicas da Covid-19 para o campo museal serão enormes. No final de março, os museus norte-americanos estimavam uma perda conjunta de receita de pelo menos 33 milhões de dólares por dia.[xxxii] No entanto, afora as condições particulares de cada país e região, o impacto deve variar sobremaneira entre as instituições museais, particularmente em função das diferenças em sua estrutura de financiamento. Entre março e abril, enquanto alguns museus europeus observavam um impacto mínimo sobre suas finanças, outros reportavam perdas de recursos na ordem de 75% a 80%, com os grandes museus localizados em cidades turísticas informando perdas semanais de centenas de milhares de euros. [xxxiii]

Os museus mais dependentes da arrecadação com bilheteria e operações comerciais (cafés, livrarias e lojas de produtos de referência cultural, por exemplo) tendem a sentir mais fortemente os efeitos imediatos de um lockdown e as consequências posteriores da diminuição de público resultante da queda no turismo e da limitação do número de visitantes. No médio prazo, entretanto, a contração da economia deve impactar mais fortemente, também, os museus financiados por aportes públicos e recursos privados.

Em conjunto, cerca de 40% dos museus preveem a perda de receitas públicas e privadas e quase 30% prenunciam demissões de funcionários, conforme o levantamento do ICOM. Na medida em que o corte de recursos obriga as instituições a reduzirem seus programas, a crise deve impactar severamente o ecossistema complexo de profissionais e empresas que orbitam os museus – curadores independentes, artistas plásticos, restauradores, educadores, pesquisadores, gráficas especializadas, empresas de expografia. No final de março, o Museu de Arte Contemporânea de Massachusetts (MASS MoCA), nos Estados Unidos, anunciou a demissão de quase dois terços de seus funcionários.[xxxiv] Um mês depois, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), um dos mais ricos do mundo, demitiu todos os educadores autônomos. No e-mail enviado aos funcionários, o museu afirma que deve levar meses, senão anos, até atingir “níveis de orçamento e operação que voltem a demandar os serviços de educadores”. [xxxv]

A dimensão sem precedentes da crise econômica que se anuncia tem impulsionado os países a adotarem medidas robustas de mitigação e estímulo fiscal, e o campo da economia criativa tem se articulado para assegurar que as medidas contemplem o setor. Os instrumentos e a magnitude do suporte financeiro variam enormemente. O Canadá prevê a destinação de 53 milhões de dólares canadenses (85 milhões de reais) especificamente para o Programa de Assistência a Museus (MAP).[xxxvi] Nos Estados Unidos, embora sem designar uma rubrica específica para os museus, o megapacote de incentivo fiscal federal (CARES Act) destina 200 milhões de dólares (mais de 990 milhões de reais) às agencias federais de cultura para subvenções a instituições culturais.[xxxvii] Na Alemanha, o pacote do governo federal de apoio a empresas de pequeno porte e profissionais autônomos, no assombroso valor de 50 bilhões de euros (280 bilhões de reais), tem sido celebrado como um suporte vital à economia criativa, cuja tessitura depende em tão grande medida de freelancers e pequenos negócios.[xxxviii] No Brasil, as medidas econômicas já anunciadas pelo governo federal em resposta à crise correspondem a cerca de substanciais 10% do PIB.[xxxix] Até o momento, no entanto, não há destinação específica para a economia criativa e não está claro o quanto as medidas serão capazes de beneficiar o setor.

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A crise econômica deve acarretar um desafio hercúleo para a já frágil sustentabilidade econômica dos museus brasileiros. As perdas de receita decorrentes do fechamento provisório imposto pelo coronavírus, ainda que um fator complicador para muitas instituições, não serão a clave da crise no setor. No país, provavelmente são poucas as instituições museais cuja arrecadação própria responde por uma parcela significativa das receitas. Em 2011, menos de um quarto dos museus brasileiros cobravam ingresso ou tinham uma loja como fonte de recursos complementares.[xl] Em 2018, a participação da arrecadação própria na receita total foi inferior a 25% em Inhotim e a 20% no Museu do Amanhã.[xli] Na Pinacoteca do Estado de São Paulo foi inferior a 5%.[xlii] Os três estão entre os museus mais visitados do país. Os fatores com potencial de maior impacto econômico da Covid-19 no setor museal brasileiro são, portanto, a redução dos repasses diretos de recursos públicos – tanto federais, quanto de Estados e Municípios - e a queda na captação de recursos junto à iniciativa privada, em um quadro de retração econômica. Medidas estruturais de fortalecimento econômico do setor museal já eram uma necessidade premente antes da Covid-19. O cenário que se desenha para o pós-pandemia reforça essa urgência.

O desenrolar da pandemia de Covid-19 é incerto, assim como seus desdobramentos futuros. Apesar de tudo, em meio aos desafios e ao sofrimento impostos pela pandemia, é possível vislumbrar aprendizados importantes. Em seu relatório sobre o impacto da crise nos museus europeus, a Rede Europeia de Organizações Museais (NEMO) afirma que “ao invés de fazermos do retorno ao normal o nosso objetivo, precisamos aprender com essa crise como responder, mitigar, adaptar-nos e nos integrar”. É plausível acreditar que a crise deixará como legado um impulso mais forte para a consolidação do patrimônio digital e que os museus estarão mais conectados entre si e com seus públicos, e ainda mais convencidos da importância das trocas e da cooperação.

*Raul Fontoura é arquiteto e mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília. EPPGG desde 2004, trabalha hoje no Departamento de Difusão, Fomento e Economia dos Museus, no Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Foi Coordenador-Geral de Cooperação Internacional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Coordenador-Geral de Promoção Comercial no Departamento de Promoção Internacional no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).


Referências

[i] UNESCO. UNESCO Report: Museums around the world in the face of Covid-19, maio de 2020. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373530

[ii] INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS. Report: Museums, museum professionals and Covid-19, 26/05/2020.

https://icom.museum/wp-content/uploads/2020/05/Report-Museums-and-COVID-19.pdf

[iii] INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Plataforma MuseusBR.

https://www.museus.gov.br/museus-do-brasil/

[iv] FREIRE, Quintino Gomes. Museu do Amanhã custou o dobro de Cidade da Música e ninguém falou nada. Diário do Rio, 18/12/2015.

https://diariodorio.com/museu-do-amanha-custou-o-dobro-de-cidade-da-musica-e-ninguem-falou-nada/

[v] SHARPE, Emily e da Silva, José. Art's Most Popular: here are 2019's most visited shows and museum. The Art Newspaper, 31/03/2020.

https://www.theartnewspaper.com/analysis/art-s-most-popular-here-are-2019-s-most-visited-shows-and-museums

[vi] Lopes Roberta. Ipea constata que 70% da população brasileira nunca foram a um museu ou a um centro cultural. Agência Brasil, 17/11/2010.

http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-11-17/ipea-constata-que-70-da-populacao-brasileira-nunca-foram-um-museu-ou-um-centro-cultural

[vii] The Art Newspaper. Five European museum directors explain their reopening strategies. 28/05/2020.

https://www.theartnewspaper.com/news/the-long-road-to-normality

[viii] Brown Kate. Berlin Museums Just Got the Green Light to Reopen in Early May: Here’s How They Are Working to Make It Safe. art.net, 22/04/2020.

https://news.artnet.com/art-world/berlin-museums-set-reopen-1840299

Archyde. Berlin museums will reopen on May 4. 22/04/2020.

https://www.archyde.com/berlin-museums-will-reopen-on-may-4/

Dege Stefan e Hucal Sarah. Museums prepare to reopen amid coronavirus crisis. DW, 30/04/2020.  https://p.dw.com/p/3bYg3

[ix] Monopol. Museumsinsel mit Mundschutz: Parzinger für behutsame Öffnung. 26/04/2020

https://www.monopol-magazin.de/museumsinsel-mit-mundschutz-parzinger-fuer-behutsame-oeffnung

[x] Stiftung Preussischer Kulturbesitz. http://www.preussischer-kulturbesitz.de/?L=1

[xi] The Florentine. The Duomo reopens. 21/05/2020.

https://www.theflorentine.net/2020/05/21/duomo-reopens-florence-cathedral/

[xii] The Art Newspaper. Five European museum directors explain their reopening strategies. 28/05/2020.

https://www.theartnewspaper.com/news/the-long-road-to-normality

[xiii] The Limited Times. Raphael, monographic exhibition never seen before in Rome. 24/12/2019

https://newsrnd.com/life/2019-12-24--raphael--monographic-exhibition-never-seen-before-in-rome.SJE2QDkJI.html 

[xiv] Itzkowitz, Laura. The Largest-Ever Raphael Exhibition Will Reopen in Rome on June 2. AFAR, 05/01/2020.

https://www.afar.com/magazine/the-largest-ever-exhibition-of-raphaels-work-is-opening-in-rome

[xv] Harlan Chico e Pitrelli Stefano. A massive Raphael exhibit reopens in Rome. Six people can enter every five minutes. The Washington Post, 02/06/2020. https://www.washingtonpost.com/world/europe/italy-reopens-museums-raphael-exhibit/2020/06/02/d7191c36-a427-11ea-898e-b21b9a83f792_story.html  

[xvi] Kremeier, Ulrike. Wir sind zurück. Wiederöffnung am 1. Mai.

https://www.blmk.de/2020/04/wir-sind-zurueck-wiederoeffnung-des-blmk-am-1-mai/  

[xvii] Hickley, Catherine. We went to one of the first German museums to reopen after the lockdown—here's what it was like. The Art Newspaper, 04/05/2020.

https://www.theartnewspaper.com/news/german-museum-opens-with-poles-and-ribbons-to-practice-social-distancing

[xviii] IberMuseus. Era uma vez uma pandemia, um projeto do Museu Nacional de Antropologia do Uruguai. 02/06/2020. http://www.ibermuseos.org/pt/recursos/noticias/era-uma-vez-uma-pandemia-um-projeto-do-museu-nacional-de-antropologia-do-uruguai/

[xix] The Art Newspaper. Five European museum directors explain their reopening strategies. 28/05/2020.

https://www.theartnewspaper.com/news/the-long-road-to-normality

[xx] Bailey, Martin. Van Gogh Museum to reopen on 1 June, but with only a tenth of its usual visitors. The Art Newspaper, 15/05/2020.

https://www.theartnewspaper.com/blog/van-gogh-museum-to-reopen-on-1-june

[xxi] Movius, Lisa. Beijing reopens Forbidden City in time for May Day holiday. The Art Newspaper, 30/04/2020.

https://www.theartnewspaper.com/news/beijing-reopens-forbidden-city-in-time-for-may-day-holiday

[xxii] Greenberger Alex. Reopening a Museum After Quarantine: See Photos of Temperature Checks, Face Masks and New Systems. ARTnews, 08/05/2020.

https://www.artnews.com/gallery/art-news/photos/museum-reopenings-coronavirus-social-distancing-slideshow-1202686450/xinhua-headlines-china-welcomes-tourism-consumption-rebound-under-strengthened-covid-19-containment-13-mar-2020/

[xxiii] INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS. Report: Museums, museum professionals and Covid-19, 26/05/2020.

[xxiv] PARK, Yuna. MMCA reopens with online reservation system. The Korea Herald, 04/05/2020.

http://www.koreaherald.com/view.php?ud=20200504000541

[xxv] MOVIUS, Lisa. New outbreak of coronavirus in Seoul has caused the re-closure of its museums, perhaps a sign of things to come. The Art Newspaper, 01/06/2020

https://www.theartnewspaper.com/news/south-korean-re-closures

[xxvi] The New Zealand Herald. Covid 19 coronavirus: Auckland Museum to re-open on May 25 under level 2 restrictions. 14/05/2020.

https://www.nzherald.co.nz/nz/news/article.cfm?c_id=1&objectid=12331807

[xxvii] The Guardian. New Zealand drops Covid-19 restrictions after nation declared 'virus-free'. 09/06/2020.

https://www.theguardian.com/world/2020/jun/08/new-zealand-abandons-covid-19-restrictions-after-nation-declared-no-cases

[xxviii] Instituto Brasileiro de Museus. Recomendações aos museus em tempos de Covid-19.

https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2020/06/Recomendacoes_Museus.pdf

[xxix] INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS. Report: Museums, museum professionals and Covid-19, 26/05/2020.

[xxx] International Monetary Fund. World Economic Outlook, April 2020: The Great Lockdown. Abril 2020.  https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/04/14/weo-april-2020

[xxxi] Jordà, Òscar, Singh, Sanjay R. e Taylor, Alan M.. The Long Economic Hangover of Pandemics: History shows COVID-19’s economic fallout may be with us for decades. Finance & Development, June 2020, Vol. 57, Number 2.

https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2020/06/long-term-economic-impact-of-pandemics-jorda.htm

[xxxii] American Alliance of Museums. Museums Included in Economic Relief Legislation. 27/03/ 2020.

https://www.aam-us.org/2020/03/27/museums-included-in-economic-relief-legislation/

[xxxiii] Network of European Museum Organizations (NEMO). Survey on the impact of the COVID-19 situation on museums in Europe: Final Report. Maio de 2020.  https://www.ne-mo.org/fileadmin/Dateien/public/NEMO_documents/NEMO_COVID19_Report_12.05.2020.pdf

[xxxiv] https://massmoca.org/37045-2/

[xxxv] Di Liscia, Valentina. MoMA Terminates All Museum Educator Contracts. Hyperallergic, 03/04/2020. https://hyperallergic.com/551571/moma-educator-contracts/

[xxxvi] https://www.canada.ca/en/canadian-heritage/services/funding/museums-assistance.html

[xxxvii] American Alliance of Museums. Museums Included in Economic Relief Legislation. 27/03/ 2020.

[xxxviii] Brown, Kate. Germany Has Rolled Out a Staggering €50 Billion Aid Package For Small Businesses That Boosts Artists and Galleries - and Puts Other Countries to Shame. artnet.news, 25/03/2020.

https://news.artnet.com/art-world/german-bailout-50-billion-1815396

[xxxix] https://www.imf.org/en/Topics/imf-and-covid19/Policy-Responses-to-COVID-19#B

[xl] Instituto Brasileiro de Museus. Museus e a dimensão econômica: da cadeia produtiva à gestão sustentável. Brasília, DF, 2017.

[xli] Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG). Balancete 2018.

https://www.idg.org.br/sites/default/files/documentos/Balancete%20MDA.2018%20%281%29.pdf

Instituto Inhotim. Demonstrações Contábeis. 31 de dezembro de 2018.

https://www.inhotim.org.br/uploads/2018/12/demonstracoes-contabeis-inhotim.pdf

[xlii] Associação Pinacoteca Arte e Cultura (APAC). Demonstrações financeiras em 31 de dezembro de 2018 e 2019.

http://apacsp.org.br/wp-content/uploads/sites/5/2018/12/Parecer-da-Auditoria.pdf