Maria Rita Kehl: Dia do Direito à Verdade é para pensarmos ressentimento e acomodação

“Um dia para pensarmos nosso ressentimento, de não apurar as coisas, de não mexer na massa do que tem que ser transformado, de exigir tão pouco das autoridades públicas e nos acomodarmos tanto”. Assim a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, que integrou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), avalia este 24 de março, Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Graves Violações aos Direitos Humanos e da Dignidade das Vítimas. Trazendo o conceito de ressentimento, que dá nome a seu livro reeditado em 2020, nesta entrevista ela resgata o trabalho da CNV, relembra histórias marcantes e avalia a brutal herança que o período deixou, com efeitos até mesmo na condução da pandemia de covid-19 e no dia-a-dia das populações periféricas.

Para Maria Rita Kehl, “nossa anistia acomodou a sociedade brasileira no pós-ditadura, como se tudo estivesse certo”. A dificuldade em enfrentar essas mazelas e a demora para encará-las se refletiu no trabalho da CNV, em que muitos disseram não ter nada a declarar. Ainda assim, a ida a lugares em que houve torturas, mortes e prisões trouxe relatos preciosos para o relatório, alguns dos quais Maria Rita Kehl resgata aqui, com particular destaque ao genocídio de indígenas e à resistência camponesa.

Na mitologia grega, a verdade é a negação do esquecimento. Na data de hoje, incluída no calendário nacional em 2018, reforçamos o direito à memória das vítimas de graves violações aos direitos humanos durante a ditadura militar. Registramos aqui a importância do direito à verdade e de superar a acomodação, reconhecendo o longo caminho que ainda temos pela frente.

O trabalho na Comissão Nacional da Verdade

MARIA RITA KEHL - Todos os países que tiveram ditadura montaram uma comissão da verdade imediatamente após o término. O Brasil não teve, o pacto foi de anistia para os dois lados - para quem lutou contra a tirania e para quem prendeu, torturou, matou e escondeu corpos. Esse pacto foi muito danoso. Ele criou uma péssima versão da ditadura de que havia dois lados em luta, como dois exércitos numa guerra. E não se trata disso: há uma população civil desarmada, em que alguns resolvem combater a tirania, um governo ilegítimo que tomou posse pela força, e o aparelho do Estado, usando a força militar para combater cidadãos dentro de seu próprio território. Nossa anistia acomodou a sociedade brasileira no pós-ditadura, como se tudo estivesse certo. Já vimos o efeito da ditadura como despolitização, já que durante 21 anos não se pode escolher, votar, debater publicamente o Brasil.

O fato é que a comissão fez o seu trabalho. Um sintoma dos tempos é que, como nossa comissão era da verdade e da justiça, as pessoas não eram obrigadas a comparecer, muitos alegavam doença, e muitos não diziam nada. Aliás, o “nada a declarar” foi o que a gente mais ouviu. Pessoas que podiam, pelo menos, localizar desaparecidos, que hoje em dia talvez não se encontre mais as ossadas, mas poderiam dizer alguma coisa para os familiares se tranquilizarem um pouco. Para as pessoas sentirem que algo foi feito, mesmo que tardiamente. Houve um tenente-coronel, Paulo Malhães, que resolveu falar. E falou um monte de coisa. Delirante ou não, querendo ou não ser herói, falou muito e alguma coisa se aproveitou. Esse cara, uma semana, quinze dias depois, foi morto em um latrocínio no sítio dele. Aí é que ninguém mais falou nada. Então o Pedro Dallari, que era o último coordenador, inventou uma coisa genial: ir aos lugares em que houve torturas, mortes e desaparecimentos com os sobreviventes que foram presos lá. Nós fomos em vários lugares, na Ilha das Flores, na base aérea do Galeão, numa delegacia em Recife, em Minas Gerais, enfim, em vários lugares. E os sobreviventes iam contando, tínhamos o depoimento in loco. Eu me lembro do mais tocante de todos, na base aérea do Galeão, quando as pessoas disseram que ouviram quando Stuart Angel foi tirado da cela, ouviram o carro arrastando ele - com a boca no escapamento, isso não sabiam -, até que um dos torturadores disse “aí já era”. Esses depoimentos trouxeram alguma substância para o nosso relatório. E em uma audiência da Comissão da Verdade, na Câmara dos Deputados, um deputado obscuro se manifestou segurando um livro do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e elogiando esse herói, e esse deputado era o cara que virou presidente do Brasil.

Então é muito terrível, porque a impressão que dá é que a sociedade que tinha uma ideia distante [da ditadura], ficou sabendo que havia uma Comissão da Verdade - essas coisas saíam nos jornais, até no Jornal Nacional. Muitos chamavam de Comissão da Mentira e criou-se a teoria dos dois lados, que nós estávamos investigando só um lado e precisávamos investigar o outro. Quando perguntávamos “que outro lado?”, diziam: “o lado dos terroristas”. A gente tentava explicar que não eram terroristas. Eu passei por isso várias vezes e quando eu ia explicar as pessoas viravam as costas e saíam. Deu para perceber que estava se criando um clima ruim, não majoritariamente, mas havia uma parcela da sociedade repudiando tudo isso. Quando, naquelas passeatas de 2013, que foram um pouco esquisitas, não-motivadas, eu vi duas vezes gente com cartaz pedindo intervenção militar, foi de gelar a espinha. Bom, esses caras não foram tirados da passeata pela polícia nem mandaram jogar o cartaz fora. Eles continuam ali, nem os caras que estão na passeata estão brigando com eles, então a coisa está ruim.

O genocídio de indígenas na ditadura

MARIA RITA KEHL - Na ditadura houve um quase extermínio, houve um genocídio [dos indígenas]. Fomos a vários aldeamentos, visitamos várias etnias, desde Roraima, Amazonas, até aqui, os guarani. E no nosso relatório a contagem aproximada dos indígenas dizimados durante a ditadura era maior do que a soma de todos os desaparecidos e presos políticos. E aí perguntavam: eles foram contra a ditadura? Não. O Davi Yanomami, quando fomos à aldeia yanomami, disse: “Eu nem sabia que havia governo. Eu fiquei sabendo quando eles invadiram nossas terras, roubaram nossas matas, secaram nossos rios, poluíram com a mineração e trouxeram a epidemia”. Do que os índios mais morreram foi de doença de branco. A gente entrevistou um ex-agente da Funai, em Alagoas, que se demitiu da Funai, e deu uma entrevista para a Veja, que na época era contra a ditadura, dizendo “eu não entrei na Funai para ser coveiro de índios”. O governo não tinha um projeto de vacinação para os sertanistas, não tinha nada. Então eles morriam. Oito mil indígenas era o cálculo aproximado que a comissão conseguiu fazer. 

Os camponeses na ditadura

MARIA RITA KEHL - Os primeiros mortos da ditadura foram dois membros das ligas camponesas: João Fuba e Pedro Fazendeiro - o “cabra marcado para morrer” [João Pedro Teixeira] tinha morrido antes da ditadura. Esses dois estavam presos e seriam soltos. As esposas pediam muito para não soltá-los durante à noite, porque eles estavam perseguidos também pelos fazendeiros locais. A polícia soltou-os à noite e os corpos foram encontrados carbonizados no dia seguinte. Então, no dia 1º de abril de 1964, essas foram as primeiras vítimas.

Os camponeses eram presos e torturados para dizer onde estavam os terroristas. E criaram entre eles uma resposta que virou padrão. Os caras perguntavam, enquanto torturavam, onde estavam os terroristas, e eles diziam: “não conheço nenhum terrorista aqui, quem está tocando o terror são vocês”. Isso é uma coisa muito forte, muito bonita da cultura oral. O cara mantém a dignidade na palavra. É claro que ao dizer isso eram mais torturados. Um dos que visitamos era a mulher que falava por ele, porque ele apanhou tanto na cabeça que ficou com um coágulo.

Outra história é a de Manoel Conceição, um líder camponês de Imperatriz (MA), que também foi preso e torturado, quando o [José] Sarney era governador do Maranhão. Ele foi tão torturado que arruinou uma perna. Como era ligado a uma igreja pentescotal, com ramos internacionais, houve uma grita internacional pela libertação do Manoel Conceição. Então o governo do Sarney ofereceu uma prótese para ele, e ele negou. “Eu não vou aceitar a perna porque quem tirou minha perna foi o seu governo. Minha perna é minha classe”, ele disse. Depois, quando foi exilado na França, passou a ter uma perna mecânica. Esse “minha perna é minha classe” é belíssimo, é de uma valentia impressionante, um sentimento de pertença a uma classe, a um grupo social.

Os militares e a PM

MARIA RITA KEHL - Me parece que os militares nunca mudaram de opinião, só que isso não estava em causa. Acabou a ditadura, eles ficaram na deles, mas não achavam que fizeram barbaridades, achavam que era isso mesmo, que você lida com os rebeldes e insubordinados assim. E vamos lembrar um outro fato: as polícias do Brasil continuaram militarizadas. É o único país que tem essa excrescência. Uma das recomendações no final do relatório da Comissão da Verdade era desmilitarizar as polícias. Porque, veja, se o preparo é militar, eles são preparados para combater elementos da população como se estivessem em uma guerra. Resultado: a polícia militar mata mais hoje, depois da ditadura, do que matou na ditadura. Só que ela mata, evidentemente, os filhos das Mães de Maio, na região de Santos (SP), onde uma molecada, deviam ser moços infratores que mataram um policial e, então, um monte de meninos negros jovens foram exterminados em vendetta. Não é isso a polícia. Ela devia ser uma polícia civil. Há um ensaio do Paulo Arantes no livro “Bala Perdida”, em que ele cita uma americana chamada Kathryn Sikkink, que diz que o Brasil foi o único país que, depois da ditadura, as polícias continuaram militares e é o único em que as polícias matam mais do que mataram na ditadura. É uma anomia praticada pelos agentes da lei. O pacto civilizatório no Brasil é muito frágil, a começar pelos 300 anos de escravidão, as duas ditaduras, a Guerra do Paraguai.

Pandemia e a postura negacionista

MARIA RITA KEHL - O discurso dele [Bolsonaro] tem ainda uma grande base de apoio. Eu tenho a impressão que tem duas coisas em jogo aí. Uma é ele, que nunca escondeu quem era, elogiou Ustra, disse “e daí, as pessoas morrem mesmo”, primeiro falou que era gripezinha, depois que havia muitas mortes. Quer dizer, não sou médica que analisa, mas a postura dele é de psicopata. Não é só uma insensibilidade à dor do outro, é quase um prazer em produzir dor. Mas as pessoas têm me dito, e agora tenho achado também, que tem um lado de cálculo nisso. De fato ele é indiferente, se não fosse indiferente já teria tentado agilizar. Tantos países estão estabilizando a onda e nós estamos numa segunda onda de mortes maior do que a primeira. Mas tem um cálculo em dois sentidos: quanto mais frágil fica a sociedade - nós não podemos sair às ruas, as pessoas estão muito assustadas, deprimidas - e inclusive a grande massa que se opõe a ele, apesar de ele ainda ter um bom grau de apoio, mais ele cresce. Porque ele joga para os fortes, nós somos os fracos. A falta de empatia é tão grande que ele acha que se ele pegou [covid-19] e não morreu quem morre é idiota. Agora, me preocupa que isso tenha ressonância. Porque as pessoas têm muito prazer em dizer “eu sou forte, minha família é forte, eu sou macho, não me pega”.

Thomas Mann, que é um romancista, tem uma frase, que não lembro em que contexto ele disse, mas serve perfeitamente: “Toda época que tem medo de si mesma tende à restauração”. Parece que isso resume. A Comissão da Verdade talvez tenha feito com que esse país tivesse medo de si mesmo. E aí o voto foi pela restauração da pior espécie. Talvez até Figueiredo tivesse sido eleito. O Brasil está num tanto de desamparo, porque a má gestão da pandemia me parece calculada, fragiliza a população. Mesmo para quem não está doente, dá uma sensação de impotência, até os panelaços são fracos. Acho que isso é calculado.

O ressentimento e nossa acomodação

MARIA RITA KEHL - O ressentimento não é a mesma coisa que a mágoa. Na mágoa, alguém te faz alguma coisa e você fica triste, pode depois perdoar ou não, se separar da pessoa, brigar, reagir. O ressentimento é uma revolta adiada, é uma das coisas que o Nietzche diz. Acontece alguma coisa, você se revolta, não faz nada e quando a coisa está mais tranquila você começa a remoer. Que função ele tem? Livrar a cara do sujeito que foi covarde e quer continuar remoendo sua mágoa, porque, na verdade, ele não se defendeu, não agiu logo em seguida, foi covarde. Então ele continua regurgitando aquilo. Então, juntando com o Dia Internacional do Direito à Verdade, que é um dia bonito mas muito pouco conhecido pela população - e nosso direito à verdade está cada vez mais aviltado, porque esse presidente mente como quer, a toda hora, e não acontece nada -, é um dia para pensarmos nosso ressentimento, de não apurar as coisas, de não mexer na massa do que tem que ser transformado, de exigir tão pouco das autoridades públicas e nos acomodarmos tanto.

Nós brasileiros, lenientes com tudo isso, covardes às vezes, acomodados porque nós somos classes mais altas, então com a gente não vai acontecer nada, não vamos às ruas, por exemplo, a cada vez que a polícia mata alguém. George Floyd, nos EUA, teve manifestações imensas, mas aqui no Brasil a polícia mata a toda hora e não há. Quando ela invadiu um baile funk na periferia e matou oito moleques… que isso? Extermínio de adolescente! Por que? Porque pode, porque são racistas e não acontece nada. Então lamento acabar nosso Dia Internacional do Direito à Verdade dizendo que, além da verdade e da mentira, há a nossa acomodação, a nossa quase cumplicidade com tudo isso. Mas espero que quando acabar a pandemia a gente vá para a rua. Acho que vamos.


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