Desigualdade de gênero na remuneração persiste na burocracia federal brasileira
Por Camile Sahb Mesquita*
No Poder Executivo brasileiro, as desigualdades entre homens e mulheres definem uma estrutura organizacional que reproduz os estereótipos de gênero. A estrutura desigual está refletida na diferença de remunerações, por exemplo. Na média, os homens recebem 10,5% a mais que as mulheres na folha salarial do Governo Federal do Brasil. As desigualdades se revelam ainda mais no âmbito da ocupação de funções de confiança, explicitando barreiras visíveis e invisíveis que as mulheres enfrentam para ocuparem postos de liderança, o chamado teto de vidro.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros (e brasileiras) que preencham os requisitos estabelecidos em lei. Hipoteticamente, a realização de provas para a entrada no serviço público brasileira deveria ser suficiente para garantir a igualdade entre homens e mulheres nas carreiras governamentais. Mas não é bem assim.
O Informe de Pessoal, elaborado pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), com dados do Sistema de Pessoal Civil até 2018, aponta que o percentual de homens no serviço público federal é de 55,2% enquanto o de mulheres é de 44,8%. É verdade que se verifica uma tendência a equidade, uma vez que há uma maior entrada de mulheres a cada quinquênio. Entre 2011 e 2015, para cada 100 homens que se tornaram servidores públicos, 93 mulheres fizeram o mesmo movimento.
Em relação à escolaridade, também há tendência à igualdade. Há mais mulheres com pós-graduação (128 para cada 100 homens) e mestrado (113 para cada 100 homens), mas os homens ainda são maioria quando se trata de doutorado (100 a cada 79 mulheres).
Se as desigualdades relacionadas à representatividade e escolaridade parecem estar sendo superadas, é no quesito remuneração que se percebe que a discriminação de gênero ainda se faz presente e que a administração pública é permeável aos estereótipos existentes.
Homens e mulheres, ao ingressar no serviço público, percebem a mesma remuneração pelo cargo que assumiram. Então, como explicar essa diferença salarial? A diferença está na ocupação dos cargos de confiança do governo, denominados DAS ou FCPE, e que são de livre provimento. A escolha (ou indicação) para o preenchimento desses cargos é realizada pelos dirigentes de cada órgão. Ao assumir essa posição, o servidor recebe uma complementação salarial equivalente. Os DAS estão estratificados em seis níveis, sendo o 6 o mais alto, ocupado por secretários nacionais e diretores ou presidentes de autarquias e fundações. Já as FCPE, criadas em 2016, são destinadas apenas aos servidores concursados e possuem 4 níveis.
Cargos de confiança no setor público são posições de liderança. Do total de DAS disponibilizados em 2018, as mulheres ocupavam 43%. No entanto, quando se considera os níveis de DAS, percebe-se uma grande discrepância nesse percentual. As mulheres estão bem representadas até o nível 3, quando ocupavam 48% das posições. A partir do nível 4, vê-se uma diminuição da participação das mulheres nos cargos de confiança. Eis, então, o teto de vidro da administração pública. É a partir do nível 4 que a posição de liderança efetivamente se concretiza. Os ocupantes desses postos participam dos círculos de decisão, sendo exigido deles habilidades como gestão de equipe, gestão estratégica, comunicação e capacidade de delegação. A não participação das mulheres em ambientes de formulação e implementação de políticas públicas pode levar a pontos cegos quanto às necessidades e prioridades dessa população.
Note-se que no nível 6, apenas 17% dos cargos são ocupados pelo sexo feminino. Essa situação não é uma característica de um ponto específico no tempo. É uma configuração que se apresenta de forma consistente ao longo dos anos e diversos mandatos.
Essa temática tem sido objeto de estudo de vários pesquisadores, como os estudos conduzido pela Enap e por Tania Fontenele-Mourão (Mulheres no topo de carreira – flexibilidade e persistência. Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, de 2006). As pesquisas indicam que mulheres apontam entre as causas para a sub-representação: a valorização da família, não quererem abrir mão dos cuidados com os filhos, terem menos disposição para disputar poder, cargos e remuneração e a valorização da carreira do marido em detrimento da própria. Quando assumem esses postos, buscam exercer um modelo de liderança específico, assumindo o ônus de serem exemplares para suas equipes. Ressaltam que a conquista da posição se deu por competência e mérito próprio, mas se sentem muito mais avaliadas e com o desempenho a prova mais que os homens. Isso pode ser o resultado da interiorização da visão estereotipada de que as mulheres pertencem a um grupo inferior e, por isso, precisam frequentemente comprovar que dão conta das expectativas assumidas.
Recentemente, o governo federal publicou o Decreto 9.727, de 15 de março de 2019, que estabelece regras e diretrizes para a ocupação de cargos e funções comissionadas. Aponta que os cargos devem ser preenchidos preferencialmente por meio de seleção pública. Desde que seja feito um trabalho de sensibilização com os dirigentes para evitar o viés de gênero, essa diretriz, caso seja adotada, talvez ajude a aumentar a representatividade das mulheres nos cargos a partir do nível 4.
Além da questão da ocupação dos cargos de confiança, as mulheres têm uma representação bem mais baixa no âmbito das carreiras federais mais estruturadas, vinculadas ao ciclo de gestão e de remuneração mais alta. A presença das mulheres nessas carreiras é em torno de 30%. Em geral, os integrantes dessas carreiras são vistos como um grupo de elite do serviço público federal, assumindo cargos de secretários nacionais, secretários executivos e até mesmo ministros de Estado.
Há uma participação maior das mulheres, cerca de 66%, no cargo de Analista Técnico de Políticas Sociais, carreira que foi criada para atuar exclusivamente nos ministérios vinculados com a área social, desnudando mais uma vez o estereótipo de que a área a social é eminentemente feminina. Em oposição, o quadro de Analistas em Tecnologia da Informação possui apenas 13% de mulheres.
O Informe de Pessoal também identificou a ocupação entre sexos por ministérios. Nessa informação, também se observa nova manifestação dos estereótipos de gênero. As mulheres estão mais presentes nos ministérios que representam as áreas de atuação mais femininas, como direitos humanos, assistência social, saúde e educação. No Ministério dos Direitos Humanos, atuam 172 mulheres para cada 100 homens. Os ministérios ligados aos temas de infraestrutura são aqueles que as mulheres menos participam. Nos Ministério do Transporte e de Minas e Energia, por exemplo, a razão de sexo é de 40% e 44%, respectivamente. É bom que se diga que são nos órgãos com perfil mais masculinos que se encontram as carreiras mais estruturadas e com remuneração mais alta.
É importante também fazer um registro sobre a questão de raça. No setor público, as desigualdades relacionadas à raça são verificadas em todas as dimensões analisadas para as mulheres (representatividade, remuneração e ocupação de cargos de confiança).
Cabe, então, questionar o que o setor público pode fazer para mitigar esses fatores que impedem o alcance da igualdade de gênero nos órgãos e instituições vinculadas. Uma primeira possibilidade que se coloca é a instituição de políticas afirmativas, como reserva de cargos de confiança para as mulheres, em todos os níveis. Os números indicam que as mulheres possuem grau de escolaridade igual ou superior aos homens. Não se trata, pois, de falta de preparo, nem de competência. Ou seja, certamente a adoção de cotas de gênero para determinadas posições poderiam rapidamente reverter o problema da ausência feminina, sem perda de qualidade de ação. Além disso, recomendações para os dirigentes que não façam reunião fora do expediente, que promovam treinamentos durante o horário de trabalho, que não utilizem a maternidade como critério de exclusão para a realização de alguma atividade, que exercitem o feedback com toda a equipe, mas principalmente com as mulheres.
Por outro lado, espera-se também do setor público ações mais estruturantes voltadas para a educação de toda a população contra os estereótipos de gênero que são treinados e testados desde a infância, bem como a oferta de serviços públicos que apoiem nas tarefas de reprodução social destinadas às mulheres, como creches, transporte público, postos de saúde e de cuidados com os idosos. Um programa de incentivo à participação das meninas em atividades de ciência, tecnologia e engenharia seria também muito importante para estimular a escolha por cursos dessa área.
Finalmente é preciso reconhecer que o Brasil não está sozinho nessa situação. Países como França e Inglaterra também convivem com grandes diferenças de gênero no setor público. No entanto, o melhor não é olhar para os lados, mas, sim, para frente onde países como Dinamarca e Noruega estão obtendo ótimos resultados na redução das desigualdades entre homens e mulheres.
*Servidora pública federal e EPPGG, Mestre em Política Social, pela Universidade de Brasília