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Quando será parida a paridade? Os resultados do CPNU e as mulheres na gestão pública

Elizabeth Hernandes*

Paulo Brunet**



O ano de 2024 foi marcado por um acontecimento inédito na gestão de pessoas no setor público: a realização da primeira edição do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU). De acordo com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), o CPNU teve como objetivos “(...) promover igualdade de oportunidades de acesso aos cargos públicos efetivos; padronizar procedimentos na aplicação das provas; aprimorar os métodos de seleção de servidores públicos, de modo a priorizar as qualificações necessárias para o desempenho das atividades inerentes ao setor público; e zelar pelo princípio da impessoalidade na seleção dos candidatos em todas as fases e etapas do certame.”

Para atingi-los, houve um grande investimento de recursos financeiros, humanos e tecnológicos. A inovação mais notável do novo formato foi a busca por ampliar as oportunidades de acesso. Ou seja, sair do que poderia estar se tornando um “viés de seleção” nos concursos, que privilegiaria o acesso de pessoas brancas, residentes em grandes cidades e com estrutura socioeconômica que lhes permitiriam tempo para dedicar-se aos estudos. 

Assim, o CPNU esforçou-se para ser mais abrangente do ponto de vista geográfico, com aplicação de provas em 228 municípios do País, e promoveu mudanças nos conteúdos das provas, para abordar temas efetivamente ligados à prática de trabalho na gestão pública. Além disso, atribuiu um peso considerável à experiência de trabalho dos concorrentes a algumas vagas, buscando evitar a facilitação de acesso do que poderia ser chamado de contingente de “estudantes profissionais”. 

Artigo de Moreira e Fernandez (2025)(1) com dados compilados pelo Movimento Pessoas à Frente mostra os avanços em termos de integração regional (Quadro 1) e de inclusão de populações historicamente relegadas no acesso aos cargos públicos. Um terço dos aprovados (6.640 pessoas) foi composto por pessoas negras, indígenas e com deficiência. 

Quadro 1 – Percentual de aprovados no CPNU segundo macrorregião

Fonte: elaboração própria a partir de dados compilados pelo Movimento Pessoas à Frente (Moreira, 2025).

Os resultados do concurso unificado revelam avanços na direção do objetivo de promover igualdade de oportunidades para diversos grupos ideologicamente minoritários. Entretanto, esbarra em um obstáculo recorrente quando se trata de promoção de equidade: o acesso das mulheres.

Este artigo objetiva discutir tais resultados e ressaltar a importância de se propor uma política afirmativa para mulheres no acesso aos cargos de gestão pública. 

Os avanços na inclusão não incluíram as mulheres

Os resultados do CPNU mostram um fato estarrecedor: apenas 37% das pessoas aprovadas são mulheres – percentual menor que o de servidoras em atuação, hoje, no Executivo federal (41,8%, segundo dados do Painel Estatístico de Pessoal - PEP)(2). 

Na carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG), a situação foi ainda pior: somente 34,7% das aprovações são de mulheres. 

Esses números ilustram a dificuldade que elas continuam enfrentando no mercado de trabalho. A PNAD Contínua(3) mostra que o salário das trabalhadoras é, na média, 21% menor que o dos homens. O acesso a cargos gerenciais também é inferior: apenas 39,3% dessas posições são ocupadas por mulheres, concentradas em setores como o de educação, saúde e serviços sociais. Na administração pública o cenário é similar: apenas 42% dos cargos comissionados – que representam algum nível de poder decisório – são ocupados por mulheres, conforme indica o Painel Estatístico de Pessoal. A média salarial das servidoras é 24,4% inferior à dos servidores.

Tais resultados apontam para a continuidade de uma história de desigualdades.  As mulheres estão em desvantagem no que tange ao rendimento médio em qualquer nível de escolarização, no acesso a cargos gerenciais e no acesso a cargos de decisão no governo federal (Quadros 2 e 3).

Quadro 2 – Rendimento médio de homens e mulheres no Brasil

Fonte: elaboração própria, com base em dados analisados pelo DIEESE(4).

Quadro 3 – Acesso a cargos de decisão 

Fonte: elaboração própria, com base no Painel Estatístico de Pessoal do MGI.

Diante dos dados sobre o mercado de trabalho e dos resultados de um concurso que buscou inovações para promover equidade em um país historicamente iníquo, surgem alguns questionamentos.

As mulheres não são cidadãs desejáveis em cargos públicos? 

A primeira pergunta, cuja resposta deveria valer aprovação com louvor é: por que as políticas que buscam promover equidade de oportunidades e propiciar o resgate de dívidas históricas não alcançam as mulheres? 

Antes de refletir sobre a resposta, uma questão anterior: para que serve um concurso público? Em princípio, para selecionar pessoas aptas a desenvolver determinadas funções na administração pública. Sendo essa seleção realizada num ambiente democrático, buscará aprovar os candidatos mais qualificados para o exercício de cargos cujo perfil e local de exercício estarão claramente desenhados no edital. Também serve para fortalecer a confiança da população nos processos de contratação do governo e evitar favorecimentos e admissões clientelistas, com base em critérios pessoais ou políticos.

Aqui surgem mais questionamentos: por que as mulheres, representando mais de 50% da população, não representam 50% dos aprovados nas seleções públicas? Será que não se encaixam no perfil desejado para as funções públicas?

No que tange ao perfil desejado, é oportuno fazer um recorte de um único ponto: a escolarização. Um edital de concurso sempre determina o nível de escolaridade a partir do qual as pessoas poderão concorrer às vagas. 

Dados do IBGE(5) indicam que, no Brasil, as mulheres são mais escolarizadas que os homens: na população com 25 anos ou mais, elas somam 20,7% das pessoas com nível superior completo, contra 15,8% dos homens. Ressalta-se a iniquidade associada à cor da pele, dado que o número de mulheres brancas com curso universitário é o dobro das pretas ou pardas - 29% e 14,7%, respectivamente.

Ou seja: se o fator “escolaridade” fosse o único a balizar a aprovação aos cargos públicos, seria alta a probabilidade de haver mais mulheres que homens entre os selecionados. Entretanto, é possível perceber que há algum tipo de barreira que impede o acesso paritário de homens e mulheres a essas posições.

Os resultados do CPNU jogam luz, então, sobre uma iniquidade ainda pouco estudada, que é a predominância de homens entre os aprovados em concursos públicos. 

As questões levantadas seguem em aberto, mas é importante ressaltar pontos importantes sobre cidadania e direitos humanos. Hannah Arendt, citada por Celso Lafer, em artigo de 1987(6), postula que cidadania é o direito de ter direitos: “A experiência histórica dos displaced people levou Arendt a concluir que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é esse acesso ao espaço público o direito de pertencer a uma comunidade política que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos.”

Chegamos naquele ponto em que é preciso lembrar que não é meme entender feminismo como a defesa da ideia radical de que mulheres são seres humanos. É tema de pesquisa científica. Na curta citação de Arendt é possível encontrar que a igualdade entre os desiguais é construída no bojo de um contrato social e requer um espaço coletivo, representado pelo direito de pertencer àquela dada comunidade. Não se trata de um pertencimento simples, mas qualificado por ser parte de um processo de asserção. Ou seja, uma proposição assumida como verdadeira por todos os componentes do coletivo. 

As mulheres ainda estão percorrendo o caminho da luta por direitos humanos e essa afirmação pode ser assumida em base empírica, pela simples leitura do noticiário ou pelo registro estatístico das inúmeras formas de violência cometidas contra elas. 

As mulheres devem ser tratadas como cidadãs desejáveis na gestão pública

É fator de risco para o baixo percentual de aprovação das mulheres nos concursos públicos o papel comumente atribuído a elas no “construído da convivência coletiva” brasileira. A mulher costuma ser a “cuidadora universal”, desde a menina que toma conta do irmãozinho até a mulher idosa que cuida de outra pessoa idosa. Dentre a numerosa literatura acerca do tema, destaca-se uma citação de Remk et al (2022) (7):

“Desde o século XIX, as mulheres reivindicam o trabalho formal e a igualdade de direitos, pois a autoridade familiar estava em mãos masculinas, do pai ou marido. No decorrer do século XX, elas conseguiram o direito ao voto, à igualdade jurídica, à escolarização e passaram a ocupar postos de trabalho no mercado formal, revelando a modernização da sociedade. Apesar disso, em casa os cuidados estão sob sua responsabilidade, resultando em relações assimétricas de direitos e do trabalho doméstico. Isto mostra que esta é uma situação de permanência histórica, pois pode ser observada ainda nos dias atuais.” Remk et al (2022)

Assumindo que o papel de cuidadora universal é um fator de risco para o desempenho das mulheres em seleções públicas, poderíamos citar que o acesso à escolarização seria um fator de proteção. Entretanto, os dados apresentados mostram que as mulheres, no Brasil, têm maior nível de escolaridade que os homens. 

Em face de tal paradoxo, é necessário pensar no contexto político. Foram decisões políticas, com muita luta, o acesso ao voto, à igualdade jurídica, à escolarização e o direito de não sofrer abusos físicos de familiares do sexo masculino. O direito feminino ao voto, por exemplo, não foi “concedido”, mas conquistado por um movimento sufragista mundial com heroicas representantes nacionais. Também vale lembrar que somente após a vigência do Código Penal Republicano, em 1890, as práticas atentatórias à dignidade das mulheres foram desautorizadas.

Faz menos de 150 anos que bater nas mulheres se tornou uma prática ilegal no Brasil. Por outro lado, também se pode dizer que, mais de cem anos depois dessa abominação ser considerada ilegal, elas continuam sofrendo violência diariamente, conforme estatísticas oficiais. Números assombrosos ilustram esse ponto: em 2023, oito mulheres foram vítimas de violência a cada 24 horas e ocorreu um estupro contra meninas ou mulheres a cada seis minutos, de acordo com o Instituto Patrícia Galvão.

No que diz respeito à educação, há vasta literatura tanto sobre a demora no acesso a esse direito quanto sobre a rapidez com que as mulheres eliminaram o hiato educacional que as afastava dos homens. Segundo Beltrão e Alves (2008)(8), a economia do Brasil colônia, baseada na grande propriedade rural e na mão de obra escrava, não favoreceu o ensino formal aos homens ou o permitiu às mulheres. A estrutura de poder, fundamentada na autoridade ilimitada dos donos de terra, estabeleceu uma sociedade patriarcal na qual a tradição cultural ibérica, trazida da matriz para a colônia, determinava que a mulher era um ser inferior e, portanto, sem necessidade de aprender a ler e a escrever. Os jesuítas, considerados os pais fundadores das obras educacionais brasileiras, eram apegados às formas dogmáticas de pensamento e pregavam a autoridade máxima da Igreja e do Estado, representados por figuras de autoridade masculina. 

Ressaltando a velocidade com que as mulheres venceram o hiato educacional, Beltrão e Alves (2008) também chamam atenção para outras dimensões onde a diferença ainda é marcante, representadas pelo hiato de gênero no mercado de trabalho.  

“O hiato de gênero e o déficit educacional das mulheres fizeram parte da realidade brasileira por cerca de 450 anos. Segundo Alves (2003), a reversão do hiato de gênero na educação foi a maior conquista das mulheres brasileiras no século passado. Esse triunfo feminino, no entanto, ainda não foi suficiente para reverter o hiato de gênero no mercado de trabalho, no acesso à renda e à propriedade, na representação parlamentar etc. A vitória no campo educacional ainda não obteve o mesmo sucesso em outras esferas de atividade. Mas, sem dúvida, o progresso educacional das mulheres brasileiras pode servir de exemplo para os dirigentes de outros países do mundo que desejam eliminar o hiato de gênero, conforme os objetivos estabelecidos nas diversas conferências multilaterais organizadas pela ONU.” (Beltrão e Alves, 2008)

Diante do paradoxo representado por mulheres mais escolarizadas, mas com menor nível de aprovação em seleções públicas, cabe pensar no percurso que levou às conquistas de direitos jurídicos e sociais às mulheres. Não ocorreram por um reconhecimento social dos direitos humanos e das capacidades que elas possuem, mas sim por resultado de políticas públicas ainda em implementação e cujas diretrizes continuam sendo, diariamente, desrespeitadas. A conquista desses direitos faz parte de um movimento de resistência, que começa com a disposição política para elaborar e fazer valer as leis. 

No início do século XIX talvez parecesse estranho postular por um código penal que criminalizasse o direito de os homens espancarem suas esposas em caso de desobediência. Espera-se que, nesta primeira metade do século XXI, estabeleça-se uma política de paridade de gênero para determinar o acesso às vagas nos concursos públicos, de modo que um articulista no início do século XXII também considere estranho o paradoxo da “escolaridade versus aprovações em concursos”. 

Em trabalho de 2022, Alves e Hernandes(9) afirmam: 

A importância da diversidade de gênero e raça em carreiras estratégicas e na ocupação de cargos de confiança na administração pública está no fato de que o serviço público é composto por pessoas. A qualidade da entrega de resultados depende de quem elabora, executa e avalia a política pública. Para que a burocracia cumpra seu papel democrático de responder às demandas de todos os segmentos da população, a composição do serviço público deve representar homens e mulheres de todas as raças, cores e etnias. A literatura sobre burocracia representativa demonstra que a maior presença de mulheres na gestão pública aumenta a percepção de confiança da população feminina no setor público, além de contribuir para que as demandas e preferências delas sejam consideradas nas decisões sobre recursos.” (Alves e Hernandes, 2022).

A paridade de gênero na gestão pública não nascerá do que, no senso comum, se chama “parto normal” (como se existissem partos anormais!). Da mesma forma que não o foram as leis sobre representação política ou para a proteção do corpo feminino contra abusos físicos. O acesso igualitário às vagas no serviço público demanda que seja gestada e parida uma política de gênero justa e equânime, em todos os tipos de seleções públicas, para mulheres. Esse é o caminho para a paridade necessária e possível. 

______________________

*Elizabeth Hernandes

Doutora em Saúde Pública, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, presidenta da ANESP

**Paulo Brunet

Especialista em Gestão (LSE) e em Gestão de Projetos (USP), Alumni Ambassador da Universidade de Londres, Gerente Geral da ANESP



Referências

(1) MOREIRA, J. ; FERNANDEZ, M. Desafios e avanços da diversidade no serviço público. Nexo, 17 fev. 2025. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/debate/2025/02/17/diversidade-servico-publico-desafios . Acesso em: 01 mar. 2025.

(2) MINISTÉRIO DA GESTÃO E DA INOVAÇÃO EM SERVIÇOS PÚBLICOS. Painel Estatístico do Pessoal. Disponível em: http://painel.pep.planejamento.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=painelpep.qvw&lang=en-US&host=Local&anonymous=true. Acesso em: 26 fev. 2025.

(3) INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNAD Contínua. 2024. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html. Acesso em: 26 fev. 2025.

(4) DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Mulheres: inserção no mercado de trabalho. 2024. Disponível em: https://www.dieese.org.br/infografico/2024/mulheresBrasilRegioes.html. Acesso em: 28 fev. 2025.

(5) INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2022: amostra “Educação”. 2025. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html?edicao=42727&t=destaques. Acesso em: 27 fev. 2025.

(6) LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados, 11 (30): 55–65. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8995

(7) RENK, V. E. et al. Mulheres cuidadoras em ambiente familiar: a internalização da ética do cuidado. Cadernos Saúde Coletiva, v. 30, n. 3, p. 416–423, jul. 2022.

(8) BELTRÃO, K.; ALVES, J. E. D. A reversão do hiato de gênero na educação brasileira no século XX. Cadernos de Pesquisa, v.39, n.136, p.125-156, jan./abr. 2009.

(9) ALVES, I. HERNANDES, E. S. C. Por que precisamos de mais mulheres na gestão pública. UOL, São Paulo, 08 abr. 2022. Diálogos públicos. Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/dialogos-publicos/2022/04/08/por-que-precisamos-de-mais-mulheres-na-gestao-publica.htm. Acesso em: 26 fev. 2025.


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