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Pedro Pontual no UOL: "Dia do servidor público: há o que comemorar?"

Pedro Pontual é presidente da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP)

Em um passado menos atrasado, a primeira – e, até o momento, única – mulher a receber o prêmio Nobel em economia, a economista Elinor Ostrom, foi reconhecida pelo seu trabalho de pesquisa sobre a governança de bens públicos, de uso comum. O trabalho da Professora Ostrom contempla o valor de iniciativas em torno do cooperativismo, algo não tão distante da forma como se organizam por aqui as comunidades quilombolas, indígenas e, de certa forma, mesmo a agricultora familiar.

O problema sobre o qual ela desenvolveu sua teoria pode ser simplificado pelo termo “the tragedy of commons”. Essencialmente, no Brasil, esse problema pode ser traduzido pelo ditado: “cachorro com muito dono morre de fome”. Ou seja, aquilo que é de todo mundo acaba recebendo o cuidado de ninguém.

Essencialmente, a discussão aborda as dificuldades de funcionamento do Estado em algumas situações de interesse difuso, rejeitando a premissa de que a única alternativa é a privatização daquilo que é comum, buscando soluções coletivas que valorizem o interesse público por meio de alternativas de organização da coletividade.

No Brasil de 2021, no entanto, não há qualquer discussão sequer próxima desse conceito ou que acredite em qualquer forma de valorização do público ou do coletivo. Pelo contrário, o conceito premiado com Nobel em 2009 é uma remota alternativa de futuro. Mas nosso presente não conseguiu ainda superar a década de 80, quando Ronald Reagan disse que “o governo é o problema” e o privado, a solução.

O serviço público do nosso país está vivendo uma das suas maiores contradições. Enquanto o Sistema Único de Saúde tornou-se o involuntário herói da pandemia, o serviço público como conceito foi escolhido como o bandido inimigo da nação, e os servidores públicos foram reduzidos a vilões avarentos e egoístas.

Com esses personagens e narrativa, está sendo paulatinamente criminalizada a ação do Estado em favor dos cidadãos. Com algo próximo de um total de 12 milhões de servidores públicos em todo o país, sendo sua maioria composta de profissionais das áreas de educação e da saúde, as escolas públicas e o próprio SUS estão sendo lentamente empurrados para fora da esfera pública, para que sejam assumidos pela sempre virtuosa e eficiente iniciativa privada.

No Congresso Nacional, essa distorção ameaça tornar-se parte de nossa Constituição Federal, que já foi um dia a Constituição cidadã. Um exemplo é o projeto apresentado no Senado Federal, que prevê pagamento de bônus para os servidores públicos federais quando o resultado primário por positivo, ou seja, quando houver superávit primário. O “resultado primário” das despesas soma os gastos obrigatórios e discricionários do governo federal sem incluir as despesas relacionadas com a dívida pública.

Em outras palavras, a proposta prevê um incentivo financeiro para que os servidores não gastem dinheiro público em bens e serviços públicos para a população. O conceito por detrás dessa proposta é um eloquente exemplo da confusão que hoje reina entre a gestão pública, incluindo os objetivos do Estado, e a gestão privada, cujo compromisso supremo é com o lucro o pagamento de dividendos.

De forma semelhante, tramitam na Câmara dos Deputados as PECs 32/2020 e 23/2021, por meio das quais pretende-se autorizar a demissão dos atuais e futuros servidores estáveis quase que numa inversão de valores: continuará com o cargo público o servidor que passar pelo crivo dos indicados políticos. Já pela PEC 23, será possível, em dadas situações, que sejam desrespeitados os mínimos constitucionais de aporte de recursos públicos em saúde e educação.

Enquanto os países desenvolvidos já têm muito bem consolidada a gestão pública como disciplina apartada da gestão de negócios privados, o Brasil insiste em não compreender o Estado, suas obrigações e seu funcionamento. O espaço de debate público tem sido tomado por visões individualistas e privatistas, negando completamente a noção de coisa pública, de bens públicos voltados a servir a toda e qualquer pessoa, a despeito de seus méritos ou posses.

Nosso país está sendo transformado em uma sala VIP, em que os que estão do lado de fora são irrelevantes, e os que estão do lado de dentro são os únicos merecedores de respeito e dignidade. É a base podre da meritocracia que se impõe, aquela definida pela loteria da vida, em que o mérito está no material do berço em que nascemos: se de ouro, você merece acessar serviços básicos como educação e saúde; se de madeira, sentimos muito – quem sabe na próxima vida? se o berço for uma manjedoura, não se empolgue: vamos matar você logo, logo.

Os conceitos de bem público, de igualdade entre todos, de garantia e respeito à dignidade humana estão sendo apagados dos orçamentos públicos, dos escritórios das autoridades públicas e mesmo de seus discursos.

O Brasil abriu a temporada de caça a quem valoriza a coletividade e o que é público. Um fiscal, servidor público imbuído da responsabilidade de fazer valer as normas de preservação do Meio Ambiente, que aplique uma multa nos termos da Lei é destratado, carimbado como opositor político e pintado com adjetivos já perdidos no tempo, no século passado, quando conflitos geopolíticos eram mascarados como guerra de ideologias sobre deveres e formas de organização do Estado.

Como forma de travar todo e qualquer avanço da sociedade brasileira, e garantir que sejam beneficiados somente os que estão na sala VIP, os debates relevantes estão sendo substituídos por discussões inúteis, esvaziamento da ciência – outro bem público outrora de enorme valia – e, obviamente, restrição do acesso à educação e saúde públicas por asfixia desses serviços.

É um ataque deliberado e com foco preciso. A PEC 23 já é a 3a proposta de emenda constitucional que tramita pela Câmara dos Deputados por meio da qual o governo tenta remover a obrigatoriedade dos patamares mínimos de financiamento da educação e da saúde, enquanto a PEC 32 prima pela vilanização e desvalorização dos servidores públicos, buscando converter em contratos precários e temporários os cargos estáveis de profissionais da educação, da saúde, da assistência social e de outras áreas que prestam serviços imprescindíveis à população de baixa renda.

Neste 28 de outubro de 2021, dia do servidor público, há pouco a se celebrar. Nosso país vive o mais agudo ataque ao que é público, de interesse comum ou coletivo. Os interesses privados, sobretudo aqueles focados na acumulação egoísta, usualmente predominantes, estão no atual momento desenfreados, transformando em política de Estado suas características predatória e destrutiva.

Hoje, não morrer de fome ou doença já é um ato de resistência. Mas, àqueles que por fortuna tenhamos saúde e comida na mesa, resistir não basta. É preciso gritar, é preciso lutar. É preciso reagir, e retomar a velha luta para que o respeito à dignidade de cada um de nós não esteja condicionado ao saldo bancário.

*Este artigo foi originalmente publicado no UOL


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