Entrevista: EPPGG Fausto Pereira debate fim do rol taxativo
O Senado Federal aprovou na segunda-feira, 29 de agosto, o projeto de lei que obriga planos de saúde a cobrir tratamentos que estão fora da lista obrigatória de procedimentos estabelecida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o chamado rol taxativo. O Congresso se debruçou sobre o tema após o STJ decidir, em junho deste ano, restringir os procedimentos oferecidos pelas operadoras de planos de saúde no País.
O texto pretende substituir a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que favoreceu os planos de saúde e não os obrigava a bancar tratamentos e medicamentos relacionados a doenças que não constam no rol das doenças cobertas pelos convênios.
A questão foi vista como uma vitória de setores da sociedade que lutam pela inclusão de novas tecnologias e aplicação de terapias inovadoras voltadas, principalmente, para doenças raras. Por outro lado, as empresas de seguros de saúde reclamam que a decisão pode onerar o custo para os segurados.
Para entender melhor a questão, conversamos com o EPPGG Fausto Pereira dos Santos, que é médico, doutor em Saúde Coletiva e foi presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar por dois mandatos.
Conceito de rol taxativo
“A ideia do rol é que ele seja obrigatório para as empresas, por isso que foi criado e é uma questão bem singular na regulação de planos privados no mundo. Por exemplo, nos Estados Unidos e em outros lugares não existe essa questão do rol mínimo, do rol obrigatório. Então, ele só tem sentido do ponto de vista conceitual se ele for taxativo, se ele for obrigatório. Um rol exemplificativo, você poderia ter a tabela da Associação Médica Brasileira ou da Associação Internacional de Doenças, ou outras formas de linkar com uma cobertura. De novo, o rol só tem sentido nessa perspectiva do ponto de vista do conceito, de princípio.”
Incorporação de novas tecnologias
“O que acabou acontecendo é que no mundo real - da regulação - você tem uma diferença entre a tecnologia ser apresentada para o setor, ser aprovada por um órgão regulador, seja brasileiro ou outro, e ela ser incorporada. E isso ocorre em fases sempre diferentes: primeiro a tecnologia surge, depois ela é aprovada e só depois é incorporada. E esse tempo, às vezes, é muito longo.”
Judicialização como estratégia para incorporar novos procedimentos
“Me parece que aí entra a busca do Poder Judiciário. Mas, ainda, me parece muito mais uma discussão da morosidade da agência reguladora (Agência Nacional de Saúde), de incorporar novos procedimentos do que, eventualmente, você não ter um rol que seja taxativo.
A partir daí, então, você abre a possibilidade de buscar o Judiciário para incorporar novos procedimentos - e isso em si já gera uma iniquidade -, fazendo com que só quem tem condições ultrapasse essa barreira. A tecnologia não está disponível para todos, mas só para aqueles que buscam o Judiciário. E aí me refiro a todas as tecnologias, não só às doenças raras. Nesse sentido, cabe a própria discussão da oncologia, dos quimioterápicos, dos imunoterápicos, com os imunobiológicos, que têm desenvolvimento e aprovação relativamente rápida e em contrapartida a agência reguladora não tem essa celeridade para incorporar. Então, nem sempre a melhor tecnologia está disponível ou acessível.
De novo, há a necessidade do órgão regulador em ser mais célere e ter mais capacidade de colocar essa tecnologia disponível. Por outro lado, você também tem uma postura das operadoras de planos de saúde que querem postergar ao máximo a incorporação das tecnologias. Algumas operadoras defendem ao longo do tempo, inclusive no âmbito do Judiciário, que o contrato deveria valer no momento em que ele fosse assinado. O que não tem nenhum sentido. Essa é a ideia de se ter uma atualização do rol para que a tecnologia esteja disponível e acessível para o conjunto dos beneficiários. Essa é uma primeira polêmica, uma primeira distinção que é preciso ser feita nesse debate.”
Necessidade de uma regulação mais célere
“Outra questão importante - que a lei aprovada tenta, de alguma forma, minimizar - é a utilização da tecnologia para aquilo que ela não foi desenvolvida. Aquele medicamento não foi desenvolvido para aquela doença, que denominamos isso de off label, ou seja, não está no bulário. Quando há o registro de um medicamento você registra para o quê ele serve. E o que nós observamos muitas vezes na prescrição médica é que se começa a usar aquele medicamento para outros fins aos quais ele não foi desenvolvido. E aí recorre-se ao Judiciário, a partir de uma prescrição médica, e de novo se tem a decisão. Isso é fortemente desorganizador.
Esse debate me parece muito mais oriundo de uma regulação ineficaz do que de um debate da questão de princípio, do fundamento das decisões. Se a gente tivesse uma capacidade de regulação maior ou melhor, a gente certamente teria um impacto muito menor. Inclusive, do ponto de vista das doenças raras. Se para aquela doença, aquele medicamento ou terapia, têm evidências, não há porque a agência reguladora não incorporar. Tem impacto de custo? Claro que tem. Tanto o envelhecimento da população quanto a incorporação de novas tecnologias têm impacto no custo, tornando isso uma obviedade e não o ponto central do debate.
Então, desde que você aprove aquela tecnologia para aquela destinação, ou seja, criando um protocolo para a utilização daquela terapia, não me parece o motivo para que essas terapias não estejam disponíveis. De novo, é muito mais uma discussão do papel regulador do que uma discussão jurídica.
Tem uma judicialização que é movida e incentivada pela indústria de tecnologia, no sentido de ela pegar um atalho para que esse desenvolvimento que ela fez chegue mais rapidamente. Mas a maior parte dos casos de judicialização na área da saúde ela vem da baixa capacidade do Estado de regular, de estar atento a esses fenômenos na sua capacidade regulatória de intervir. Acaba que isso vai para o Judiciário e decide-se sobre questões que ele não tem formação, capacidade técnica para decidir. Se um medicamento será usado ou não, a decisão está na na mão de um juiz. Isso tem um lado positivo de defesa da sociedade, do direito do cidadão de requerer pela via do Judiciário, mas do outro lado tem uma distorção enorme do lado de quem está decidindo pelo uso da tecnologia ou não.”
Impacto no SUS
“Acho que não precede o argumento sobre o impacto no SUS. Que haverá impacto nos custos é óbvio, agora esse impacto e como estamos falando de doenças raras ou de um número de casos muito pequeno, isso é diluído no mutualismo da concepção do plano de saúde. A rigor, a concepção do plano de saúde é um conjunto de pessoas sãs pagando para alguns doentes usarem e mesmo assim em uma perspectiva de longo prazo. Então, é óbvio que há impacto no custo, mas ele é absolutamente absorvível pelo setor, pelos reajustes, e não me parece que isso será o fator de expulsão de pessoas para o sistema público de saúde. As empresas sempre são catastrofistas frente a qualquer mudança do marco regulatório ou de alguma instabilidade jurídica desse marco. Nesse sentido, não há dados, procedências ou estudos que apontem esse impacto com as incorporações de tecnologias.
Quando houve a incorporação de tecnologia dos quimioterápicos orais para tratamentos de câncer, o discurso das empresas foi o mesmo. Eles afirmavam que incorporar quimioterápico no rol de terapias iria causar um reajuste exponencial e que iria expulsar as pessoas dos planos de saúde, o que não aconteceu, assim como outras tecnologias que foram incorporadas, muito mais abrangentes, do que essa discussão sobre as doenças raras. Me parece uma visão catastrofista que não se sustenta em evidências e em dados.”
Mobilização poderia ser mais ampla e na defesa do SUS
“Nesse contexto de aprovação da lei que determina aos planos de saúde cobrir tratamentos que estão fora da lista obrigatória de procedimentos estabelecida pela ANS, o chamado rol taxativo, houve uma vocalização muito grande de pressão por parte de atores influentes da sociedade que a gente gostaria muito que eles também se mobilizassem na defesa do SUS. Aliás, isso seria uma grande contribuição, inclusive na discussão de que essa tecnologia deve estar disponível para todos, e não só para quem tem plano de saúde. Esses atores tiveram uma vitória importante, mas do ponto de vista de quem formula e trabalha com política públicas, a gente gostaria que essa mobilização também se desse em torno de valorizar o SUS, obter mais recursos para o SUS e para que essas tecnologias também estivessem disponíveis no SUS para toda a população e não para um grupo menor, para um grupo que já tem algum tipo de diferenciação dentro da sociedade seja pelo poder aquisitivo, seja pela capacidade de influência.
Esse cenário de mobilização me parece interessante, mas eu gostaria mesmo que eles estivessem todos em defesa de um sistema universal e integral para o conjunto da população, sem distinção, reduzindo a iniquidade, que é hoje o sistema de saúde brasileiro. Os números, hoje, são gritantes quando se compara, por exemplo, 70% da população brasileira que tem acesso ao SUS com a população beneficiária de planos de saúde. Nesse universo, a população brasileira tem 8% de internação no SUS, a população de plano tem mais de 16% de internações, 7 a 8 consultas por beneficiário/ano e o uso de tecnologia até em excesso. Mostrando que já existe uma iniquidade muito grande, mediada pela capacidade econômica, e que o melhor caminho seria essas tecnologias estarem acessíveis a todos.”