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Desmonte da Política Nacional de Saúde Mental: quem ganha o quê, por que e que diferença faz

POR

Elizabeth Sousa C. Hernandes*

Waleska Batista Fernandes**

Do ponto de vista prático, política pública pode ser compreendida como uma forma de conciliar o conhecimento científico com o empirismo dos governos e, ao mesmo tempo, estabelecer diálogo entre cientistas sociais, grupos de interesse e estados. A definição vem da expressão policy analysis, elaborada por Harold Dwight Lasswel em 1936(1) Em suma, Lasswell afirma que decisões e análises sobre política pública implicam responder quem ganha o quê, por que e que diferença faz. Mas afinal, qual a relação entre essa definição e o desenvolvimento das políticas públicas de saúde mental no Brasil?

Um histórico de como chegamos a esse ponto

As primeiras ações relacionadas à saúde mental, no Brasil não diferem das desenvolvidas em outros países. Desde o início, o foco era resolver o problema da comunidade com os indivíduos que, além de não produzirem, atrapalhavam os processos de produção e incomodavam o dia a dia das comunidades, compostas por uma maioria de indivíduos “normais”.

O escopo das políticas de saúde mental, no Brasil colonial, também não se diferenciava do que servia às outras enfermidades. Prevalecia a lógica dos cuidados especializados para quem podia pagar e caridade para quem não podia. No caso das doenças mentais, o desenvolvimento dos modelos de cuidado foi mais lento que para as outras enfermidades, prestados por curandeiros, inclusive sacerdotes católicos, principalmente jesuítas. Médicos com formação acadêmica eram raros e até o acesso a cirurgiões e barbeiros licenciados era difícil, a não ser nos centros maiores que, por sua vez, serviam aos que podiam pagar. Não havia especialistas em psiquiatria, mas, hospitais como a Irmandade das Santas Casas de Misericórdia abrigavam enfermos pobres e os não pobres que fossem abandonados por algum motivo. Esse albergamento ocorria em condições sanitárias precárias, mesmo para aquele momento histórico-social. Apenas entre o final do século XVIII e início do XIX, o avanço do conhecimento científico e da consciência social impulsionaram a medicina para um formato mais humanístico e menos higienista.

Com a transferência da coroa portuguesa, em 1808, começa, no Brasil império, um processo de urbanização e com ele, novos problemas vieram à tona, como o dos loucos, vistos com certa “naturalidade” nas pequenas comunidades rurais, mas visíveis e perturbadores no meio urbano. Além disso, cuidar deles implicava ônus objetivos e subjetivos para as famílias. A inauguração do Hospício do Rio de Janeiro veio como iniciativa modernizadora para a época, seguindo o modelo francês e servindo de paradigma para os posteriores.

A partir desse desenvolvimento inicial, mesmo críticos ferrenhos da luta antimanicomial reconhecem que o surgimento dos psicofármacos teve, além das bem documentadas consequências positivas, outras consequências nefastas, desumanas e antieconômicas, do ponto de vista das finanças do Estado. Entre eles, o psiquiatra Miranda-Sá Jr.(2), para quem a “assistência psiquiátrica pública se dividiu entre aquela patrocinada pelo Estado e outra, mantida pela previdência social pública, que se multiplicou movida única ou predominantemente pela busca de lucro. O doente mental se transformou em uma fonte inesgotável de lucro para empresários que viviam dessa condição.”:

Exemplo cruel desse modelo hospitalocêntrico foi o caso do Hospital Colônia de Barbacena, um escândalo mundial, que ficou conhecido como o “Holocausto Brasileiro”. Fundado em 1903, com capacidade para 200 leitos, o ambiente que deveria ser para cura, atingiu a marca de cinco mil pacientes em 1961, tornando-se endereço de um massacre. A superlotação que já era uma realidade na década de 30, ganhou proporções ainda mais absurdas com a mudança de critérios médicos para encaminhamento das pessoas durante a Ditadura Militar. A partir de então, a instituição, que já sofria com a falta de espaço para atendimento dos doentes mentais, passou a receber homossexuais, militantes políticos contrários ao regime, mães solteiras, alcoolistas, pessoas em situação de rua, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais(3).

Infelizmente, foi necessário este e outros genocídios para que a modelo de atendimento em manicômios fosse seriamente questionada pela sociedade brasileira.

A luta antimanicomial

Foram muitos anônimos, médicos, trabalhadores dos hospitais, movimentos sociais pela saúde, indivíduos e instituições, que se engajaram na luta pela restituição da dignidade necessária às pessoas com doença mental no Brasil. Entretanto, destaca-se em especial, o trabalho da aluna de Carl Jung, a psiquiatra Nise Magalhães da Silveira, reconhecida mundialmente por sua contribuição à psiquiatria e ao cuidado humanizado.

Sua luta se iniciou em 1944. Após ter cumprido um ano e meio de prisão por motivos políticos, foi reintegrada ao serviço público e, passando a atuar no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro. Além de ser a única mulher do corpo médico, Nise discordava dos métodos adotados e se recusava a aplicar eletrochoques nos pacientes. Como retaliação por desafiar seus pares e os métodos da instituição, foi transferida para uma atividade que, na época, era desvalorizada pelos médicos: a terapia ocupacional.  Como semente, que floresce onde foi lançada, foi justamente neste contexto que Nice revolucionou a Psiquiatria praticada no país, quando, em 1946, fundou a "Seção de Terapêutica Ocupacional", com ateliês de pintura e modelagem com intenções efetivamente terapêuticas e de busca de reatamento de vínculos com a família e a sociedade, no lugar de tarefas impostas como as de limpeza e manutenção, realizadas como trabalho não remunerado e disfarçadas de terapia ocupacional.

Muito conhecimento científico, humanitário e político foi produzido. Diversos personagens e instituições atuaram – com destaque para o movimento dos trabalhadores da saúde mental e para o da Reforma Sanitária. E assim, o país do escândalo mundial de Barbacena avança e entra no século XXI com a publicação da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). A Lei 10.216/2001 promoveu mudanças estruturais importantes na organização dos serviços e implementou reivindicações do abrangente movimento que defendia a Reforma Psiquiátrica.

Durante os governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) veio a implementação dessa política, que rendeu ao país o reconhecimento da comunidade internacional(4). Com a destinação de recursos para serviços de natureza extra-hospitalar, fechamento e/ou descredenciamento significativo de leitos e/ou hospitais psiquiátricos e publicação de portarias que visaram a expansão dos serviços e ações, vieram significativos avanços na construção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), além da reestruturação da assistência psiquiátrica e atenção ao usuário de álcool e outras drogas.

Apesar de algumas discordâncias em relação à gestão, financiamento, implantação e expansão de serviços e do posicionamento ético-político adotado frente ao fenômeno da doença mental, essa política trouxe resultados práticos importantes. Entre outros, extinguiu os “depósitos de loucos e indesejáveis” e propôs a inclusão das pessoas com doença mental na comunidade, recebendo os cuidados adequados em todos os níveis de atenção do SUS (Atenção Básica, Média e Alta Complexidade), por meio de equipes interdisciplinares que, tal como na abordagem de Nise da Silveira, retiravam o foco da doença e do médico, priorizando a pessoa com doença mental e seu tratamento, sem a obrigatoriedade de exclusão da comunidade.

A RAPS, implementada por meio das diversas portarias que se seguiram, abrangia o tratamento da doença mental em toda a rede do SUS, com destaque para a criação dos Centros de Atenção Psicossocial e dos Consultórios de Rua, sem excluir a possibilidade da internação, quando necessária. Práticas que desagradaram grupos de interesse econômico que se beneficiavam do que chegou a ser denominado pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental de “mercantilização da loucura”. Também foram contrariados interesses corporativos, por retirar a centralidade do tratamento da figura do médico e dos defensores da pauta de costumes, que se utilizam, com frequência, dos fenômenos da sexualidade e da doença mental para defender suas crenças.

O início do desmonte

Entre 2016 e 2018, com o governo Temer, inicia o processo de desmonte das conquistas da PNSM. Os pesquisadores Cruz, Gonçalves e Delgado (2020) (5))analisaram 14 documentos  – portarias, resoluções, uma Nota Técnica e um Decreto – publicados entre outubro de 2016 e abril de 2019, que indicam  “os primeiros efeitos das mudanças na Rede de Atenção Psicossocial, como o incentivo à internação psiquiátrica e ao financiamento de comunidades terapêuticas, ações fundamentadas em uma abordagem proibicionista das questões relacionadas ao uso de álcool e outras drogas“ e, ainda,  a “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária” .

A proposta do Governo Bolsonaro

Característica do governo Bolsonaro, as propostas apresentadas à sociedade são “vazadas” na mídia ou em redes sociais. Com a proposta de mudança da PNSM não foi diferente. No dia 07 de dezembro de 2020, o Jornal Folha de S. Paulo(6) publicou dados obtidos por meio de uma planilha elaborada pelo Grupo Técnico do Ministério da Saúde, constituído para tratar do assunto e que abordavam as principais propostas a serem apresentadas ao Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS),  destacando pontos (des)estruturantes da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). Entre elas, a revogação de mecanismos de fiscalização de hospitais psiquiátricos e extinção das equipes que apoiam a transferência das pessoas que hoje residem nesses equipamentos para as famílias de origem ou equipamentos de assistência social, a extinção do atendimento psiquiátrico nos CAPS, dos serviços de atendimento à saúde da população em situação de rua, e do controle sobre as internações involuntárias de pessoas com dependência química que, atualmente, demanda comunicação ao Ministério Público; a revogação do Fórum Nacional sobre Saúde Mental de Crianças e Adolescentes e das diretrizes sobre saúde mental indígena, transferência da responsabilidade da política sobre drogas para o Ministério da Cidadania e a criação de serviços específicos para pessoas com diagnóstico de dependência química e outros transtornos psiquiátricos.

De volta à pergunta: afinal, quem ganha o que, por quê e que diferença faz?

Se efetivadas as propostas, os grupos que defendem a segregação das pessoas com transtornos mentais e que preferem a responsabilização individual dos doentes e não a análise pela ótica abrangente dos Determinantes Sociais de Saúde, ganham financiamento e protagonismo político. Lembrando que isso inclui o tratamento da dependência química, que teve gigantesco incremento orçamentário num contexto de austeridade fiscal para todas as políticas de saúde e assistência social. O por quê talvez se explique pela ascensão de grupos políticos que defendem a pauta de costumes e que podem representar, também, grupos que têm interesses financeiros na “mercantilização da loucura”. 

Isso faz muita diferença para a diminuição do acesso a tratamentos baseados em evidências científicas, e valores éticos e humanitários, na população de um país com mais de 200 milhões de habitantes e que em 2017 (período pré-pandemia por coronavírus) contava com 5,8% de pessoas com depressão e 9,3% com ansiedade, de acordo com dados da OPAS (Organização Pan-americana de Saúde)(7). Além disso, abundam dados sobre consumo de drogas, dentre os quais se destacam os do VIGITEL(8), estudo conduzido anualmente pelo Ministério da Saúde, que mostra, em 2018, 26% dos homens e 11% das mulheres com relato de consumo abusivo de álcool. E por fim, já há estudos sobre as consequências da pandemia pela covid-19 sobre a saúde mental, como os dados preliminares de uma pesquisa do Ministério da Saúde que mostra, que em um total de 17,5 mil questionários,  a ansiedade afetava 86,5% do total de pessoas que responderam à pesquisa(9).

O Brasil não pode permitir um retrocesso, em termos de política de saúde mental. De volta à Lasswel (1936), “em se tratando de política pública, não é admissível que ganhem os mercadores da loucura e os mercadores dos templos, que vão auferir lucros na indústria farmacêutica, na indústria da segregação e na indústria dos costumes”, porque conseguiram ascensão política partidária.

Outro enorme retrocesso é também a volta dos “indesejáveis” aos cárceres, poupando as pessoas “normais” dos questionamentos suscitados pelo seu comportamento e pelos fatores socialmente determinados como as iniquidades socioeconômicas.

É fundamental que a comunidade acadêmica, os movimentos sociais e todo indivíduo ou instituição que se importe com Direitos Humanos levante a voz para mudar o rumo dessa história. Com isso, ganhará quem deve ganhar: a sociedade, que é afetada pelo sofrimento mental de qualquer dos seus indivíduos e por todas as situações de destituição de direitos.

Referências Bibliográficas

(1) Laswell, H.D. Politics: Who Gets What, When, How. Cleveland, Meridian Books. 1936/1958.

(2) Miranda-Sá Jr, Luiz Salvador. Breve histórico da psiquiatria no Brasil: do período colonial à atualidade. Rev Psiquiatr RS. 2007;29(2):156-158.

(3) Arbex, Daniela. Holocausto Brasileiro. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2019.

(4) Mota, Alessivânia; Teixeira, Cármen. O desmonte da Política Nacional de Saúde Mental em tempos de pandemia. Observatório de análise Política em Saúde, 2020. Disponível em https://www.analisepoliticaemsaude.org/oaps/pensamentos/bdbf2024d57cb707acafb4b32b0d6b47/3/

(5) CRUZ, Nelson F. O.; GONÇALVES, Renata W.; DELGADO, Pedro G.G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019.Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020.

(6) COLLUCI, Cláudia. Governo Bolsonaro quer revogar portarias que sustentam política de saúde mental. Reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo, edição de 07.12.2020. disponível em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/governo-bolsonaro-quer-revogar-portarias-que-sustentam-politica-de-saude-mental.shtml

(7) Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). Aumenta o número de pessoas com depressão no mundo. Disponível em

https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5354:aumenta-o-numero-de-pessoas-com-depressao-no-mundo&Itemid=839

(8) Brasil. Ministério da Saúde. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf

(9) UNFPA. Pandemia pode ter agravado saúde mental da população brasileira. Disponível em https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/pandemia-pode-ter-agravado-saude-mental-da-populacao-brasileira

* EPPGG e pesquisadora do NEPPOS (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social).  

** Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Adulto da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde – FEPECS


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