Lilian Rahal: “Estamos assistindo nascer uma geração que pode ter problemas de saúde e cognitivos pela fome”
Na semana em que os dados do VIGISAN (II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil) revelaram a existência de 33,1 milhões de pessoas passando fome, conversamos com a EPPGG Lilian Rahal, que já foi Secretária Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, para analisar a situação apresentada pela pesquisa. A insegurança alimentar grave está presente em 15,5% dos domicílios brasileiros e o quadro se agudizou rapidamente nos últimos anos, agregando mais 14 milhões de pessoas nessa situação, desde o 1º Inquérito, realizado em 2020.
A fome é um problema com raízes em múltiplos fatores. Como Josué de Castro, autor da obra “Geografia da Fome”, já apontava há 75 anos, a fome não é um fenômeno natural; é possível enfrentá-la. E foi isso que, em anos recentes, vimos acontecer no Brasil. Foram reduzidos os indicadores de insegurança alimentar a patamares inferiores a 5% da população, fazendo com que o Brasil saísse do Mapa da Fome das Nações Unidas.
Inflação, desemprego e desmonte de políticas de Segurança Alimentar
A política pública de Segurança Alimentar e Nutricional é intersetorial e implica em esforços, ações, programas e políticas integrados de diversos setores, desde Saúde, Educação, Agricultura até Assistência Social e o próprio Sistema de Justiça.
Considerando essa arquitetura, segundo Lilian Rahal, as causas para o aumento da fome no Brasil são múltiplas. Nesse momento, temos, no País, uma situação de inflação alta, agravada pela pandemia de covid-19, que afeta a vida das famílias mais pobres, principalmente pela alta dos preços dos alimentos, além do desemprego em taxas muito altas e da desvalorização do salário mínimo. Em paralelo a esse quadro econômico, assistimos à desarticulação de uma série de políticas e programas que amparavam e atacavam a insegurança alimentar das famílias mais pobres, bem como o enfraquecimento e desfinanciamento dessas políticas que se somavam a uma rede de proteção social mais ampla.
“Então, vejo que a fome é o desfecho de uma situação social grave, fruto da combinação de fatores macroeconômicos com a desarticulação de políticas e programas essenciais que poderiam incidir e enfrentar esse fenômeno”, aponta a EPPGG.
Lilian Rahal ressalta que o alerta para a fome divulgado nesta semana foi dado pela pela Rede PENSSAN, isto é, nem a mensuração da fome, o governo brasileiro está dando conta de fazer.
Consequências da fome para a saúde e qualidade de vida
A pesquisa também revelou que, entre as pessoas que há três meses não compravam feijão, 49,3% estavam em insegurança alimentar grave. O mesmo ocorre para 45,8% dos que não compraram arroz, 70,4% dos que não compraram carne, 63,6% no caso dos vegetais e 64% para as frutas. Assim, há um quadro de restrição severa de acesso a itens essenciais que compõem a alimentação dos brasileiros, permitindo inferir consequências para a saúde e qualidade de vida dessas famílias.
“Estamos assistindo o nascimento de uma geração que pode ter problemas de saúde, problemas cognitivos derivados da fome”, afirma Lilian.
Quando o Brasil saiu do Mapa da Fome em 2013, o País alcançou níveis muito baixos de desnutrição, praticamente erradicando a desnutrição aguda - que é o déficit de peso - e mantinha algum nível de desnutrição crônica, que é medido pelo déficit de altura entre as crianças. Para Lilian, a partir desses dados vamos começar novamente a identificar índices mais altos de desnutrição, que afetam de maneira intensa populações indígenas e populações tradicionais.
“Quando nós temos 33 milhões de pessoas passando fome, essa desnutrição, que vinha sendo concentrada em determinados segmentos e em determinados territórios, deve voltar com mais força. Um agravante mostrado pela pesquisa é que a fome já chegou nas crianças. A insegurança alimentar grave, ou seja, a fome, é maior nos lares em que há mais pessoas com idade abaixo de 18 anos. E, de maneira aterradora, a fome traz efeitos ao longo tempo, afetando a saúde e a qualidade de vida dessas crianças e na vida adulta”, analisa.
O Estado como protagonista na solução da fome
Em sua trajetória profissional enquanto servidora pública, Lilian Rahal atuou em áreas de governo que foram essenciais na formulação e na implementação de políticas públicas exitosas de agricultura familiar e segurança alimentar e nutricional. Assim, para Lilian, se alguém pode atuar frente à fome, é o Estado. A situação atual é resultado de uma série de ações e inações de dirigentes governamentais ao longo do tempo.
“Se a gente olhar a intersetorialidade da insegurança alimentar, a partir de seus pilares mais estratégicos, que são a estabilidade da produção, o abastecimento e a disponibilidade dos alimentos, o acesso à alimentação e o consumo/regulação dos alimentos, podemos identificar diversos indicadores que mostram o rumo que essas políticas foram tomando. Por exemplo, na produção, observamos uma clara redução da quantidade produzida de arroz, feijão e mandioca, em detrimento das áreas plantadas com soja e milho, indicando políticas que incentivam a produção de commodities. Além disso, a redução profunda de investimentos em assistência técnica e programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). Neste ano, vimos os recursos do crédito rural acabando antes de acabar a safra, impactando muito agricultores com acesso a crédito subsidiado”, diz.
Lilian ressalta que há dois grandes programas de acesso à alimentação no País: o Bolsa Família, que migrou para o Auxílio Brasil, acarretando vários problemas, entre eles, a fila, aplicativo que não funciona e problemas no cadastro, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que continua com o mesmo valor per capita de alguns anos atrás e com a inflação corroendo esse recurso. Assim, as prefeituras estão com dificuldades, agravadas na pandemia, de oferecer alimentação escolar em quantidade e qualidade suficientes para os estudantes.
Já com relação a consumo e regulação, há uma série de medidas que poderiam ser tomadas pelo Estado, mas estão sendo dificultadas.
“Para além da desarticulação, um dos principais problemas hoje para o enfrentamento da fome é uma efetiva governança para coordenação de ações, como já existiu no País, e foi desmontada pelo atual governo”, conclui Lilian.