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Política audiovisual em tempos de COVID-19: arte e indústria em confinamento

Por Alexandre Muniz e Luciana Vieira*

“Nosso país é um país de Cultura. E nós nos orgulhamos da diversidade da nossa oferta cultural em todo o país: dos museus, dos teatros, das salas de concerto, dos clubes de literatura e muito mais. A nossa oferta cultural fala sobre nós, sobre nossa identidade. A pandemia do coronavírus significa um corte profundo na nossa cultura. Os artistas, e muito particularmente os artistas autônomos, são especialmente afetados. O momento atual é de insegurança. E, por isso, o governo federal, juntamente com os estados, se preocupa em que a nossa vida cultural continue no futuro e que pontes sejam construídas para que os artistas cheguem até lá. Eventos culturais são da maior importância para a nossa vida. E isso é verdade também em tempos de pandemia. Talvez agora nós estejamos nos dando conta do quanto a vida cultural nos faz falta. Pois da interação entre os artistas e o público se originam perspectivas totalmente novas, com as quais podemos olhar para a nossa própria vida: somos confrontados com emoções, desenvolvemos novas emoções e pensamentos, somos preparados para entrar em discussões interessantes, compreendemos melhor o passado e, também, podemos ver o futuro com outros olhos”[1]

Com essas palavras a conservadora Angela Merkel, anunciou, no dia 09 de maio, medidas do governo alemão para o setor cultural no contexto da pandemia da COVID-19.

De fato, em todo o mundo, esses tempos de confinamento têm nos lembrado algo que parecia esquecido: como a arte é inerente à vida. A pandemia tem revelado o quanto a arte é necessária e preenche nossos dias com sentido e beleza. Nesse momento em que a vida está em risco, os temas humanistas e a arte – atacados incansavelmente em batalhas nas quais o bom senso é a primeira vítima – revelaram-se urgentes. Diante do perigo real trazido pelo coronavírus, a cultura, o conhecimento, a universidade, a ciência e o posicionamento humanista em relação ao outro – ao diferente – provaram seu valor de imediato.

No que diz respeito à cultura, foi nela que fomos buscar acolhimento para atravessar a insegurança e a dureza da hora. Por vários motivos inerentes à natureza humana continuamos a buscar a arte como um meio de vivermos e compartilharmos sensações, sentimentos, modos e saberes. A vida em confinamento provocou mudanças em nosso comportamento, mas o desejo da vida cultural continuou. Diante das restrições impostas pelo isolamento social e da impossibilidade de usufruir das experiências artísticas tradicionais, vividas indoor e coletivamente, fomos buscar alternativas: a arte digital e, especialmente, o audiovisual se tornaram nossa maior fonte de prazer.

Alavancada pela internet e pelas novas tecnologias de comunicação, a experiência virtual tornou-se a principal forma de conexão social e cultural. Ora através de uma videoconferência com amigos, ora numa live com seu artista preferido, ou por meio de horas de conteúdos como telejornais, filmes, séries, o audiovisual – que já tinha enorme importância na cultura digital – assumiu nesse período de confinamento um papel ainda mais preponderante nas artes e relações sociais. Nunca se consumiu tanto audiovisual como agora: tanto as grandes redes de televisão quanto os serviços de video on demand (VOD) nas plataformas de internet – todos – tiveram aumento de audiência e de acesso aos seus conteúdos online.

Ao mesmo tempo, atividades culturais, como shows, espetáculos, cinemas, teatros e museus foram as primeiras a fechar e serão as últimas a reabrir, deixando toda uma gama de empresas e trabalhadores da arte em condições limítrofes de sobrevivência.

Por tudo isso, no combate ao coronavírus, os governos ao redor do mundo voltam suas ações de amparo à sociedade e mitigação de danos econômicos também para o setor cultural.

No Brasil, a interrupção dessas atividades, além de ter deixado a vida mais monocromática, fez surgir uma série de situações urgentes que revelaram não só as fragilidades das políticas culturais brasileiras (velhas conhecidas) mas, sobretudo, a incapacidade do governo de articular qualquer reação à crise no setor cultural, mesmo dentro do marco das políticas e instrumentos já existentes. Qualquer mesmo: palavras não precisam de previsão orçamentária e, ainda assim, não houve sequer uma fala das autoridades governamentais brasileiras em apoio aos profissionais do setor – símbolo do limbo em que a política cultural se encontra.

Esse artigo vai discorrer especificamente sobre os desafios adicionais trazidos pela COVID-19 ao setor audiovisual, que é, ao mesmo tempo, arte e indústria – e um importante vetor de emprego e renda no Brasil. Serão abordadas a centralidade da governança e da gestão das políticas públicas para a superação da crise que se instalou no setor desde 2018, o agravamento da crise diante da pandemia e os caminhos para a retomada dessa indústria, que passam, necessariamente, pela retomada da institucionalidade do setor.

Política audiovisual: os (des)encontros entre arte, indústria e Estado

No Brasil, o audiovisual é encarado como política pública de Estado desde, pelo menos, 1910, com o emprego do cinema no ensino e na pesquisa científica, quando foi instalada a filmoteca do Museu Nacional com os filmes da Comissão Rondon do centro do país. No entanto, mesmo com as diferentes ações e políticas realizadas ao longo dos anos, e com um histórico de investimentos no audiovisual que vem desde antes da transição do cinema analógico para o vídeo digital, as políticas públicas desenvolvidas para o setor foram marcadas por descontinuidades.

Em 2001, o Brasil deu início a um novo projeto político para o audiovisual. A Medida Provisória 2.228-1/2001 criou a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e reestabeleceu a ideia de que o Estado tem obrigações com a cultura e o audiovisual. A descisão foi fundamentada no artigo 145 da Constituição Federal de 1988, que afirma que o Estado “deverá garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” e na Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, que afirma “a necessidade de proteger a expressão cultural dos povos e nações diante dos desafios do capitalismo globalizado”.

Essa nova política pública para o audiovisual teve como preocupação central a criação de um espaço próprio para o cinema e o audiovisual no âmbito do governo e, desde então, vinha sendo executada com base em três pilares fundamentais: o Conselho Superior de Cinema (CSC), também estabelecido pela MP2.228-1/2001, a Ancine e a Secretaria do Audiovisual (do então Ministério da Cultura).

A essa estrutura de governança somou-se, em 2006, o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA), composto por representantes da Ancine, do governo, dos agentes financeiros e da indústria. Ao CGFSA compete definir o plano anual de investimentos e as diretrizes para a aplicação de recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que é formado com recursos da própria indústria, por meio, principalmente, da arrecadação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – Condecine. O fato gerador da Condecine é a veiculação, produção, licenciamento e distribuição de obras audiovisuais com finalidade comercial e, a partir da Lei 12.485/2011, passou a ser devida pelos prestadores de serviços que se utilizem de meios que possam distribuir conteúdos audiovisuais, tais como as empresas de telecomunicações e operadoras de televisão por assinatura (serviço de acesso condicionado).

Nesses quase 20 anos desde a publicação da MP 2.228-1/2001, a política audiovisual brasileira, executada principalmente por meio da regulação e do fomento realizados pela Ancine, adaptou-se a grandes transformações, tanto dos volumes e dos tipos de investimento no setor, quanto de suas tecnologias e tendências do mercado.

O audiovisual tornou-se o setor mais estruturado da economia criativa. Segundo diversos estudos, adquiriu porte comparável às indústrias farmacêuticas e têxtil no país: corresponde a 1,67% do PIB brasileiro, adiciona mais de 20 bilhões de reais por ano à economia e gera mais de 300 mil empregos diretos e indiretos. Até 2018, apesar da crise econômica que retraiu diversos setores, continuou em expansão, tendo crescido cerca de 7% ao ano nos últimos seis anos[2]. Para o consumidor brasileiro, apenas no cinema, isso representou um crescimento de 131% no lançamento de filmes nacionais entre 2010 e 2018 e o maior número de salas de cinema da história do país (3.356 salas de cinema em 2018, vis a vis 1.033 salas em 1975, o menor número da série histórica).[3]  

No entanto, a partir de 2018, os pilares que sustentavam a política começaram a ruir. O primeiro golpe veio com a decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de considerar ilegal a metodologia de análise de prestação de contas adotada pela Ancine (apesar de baseada no Decreto 8.281/2014) e de condicionar a continuidade das operações de financiamento à existência de capacidade operacional para o acompanhamento dos projetos e a análise de prestação de contas. Desentendimentos entre os dois órgãos e a má-gestão da crise levaram à suspensão do repasse de recursos públicos para o setor audiovisual[4]

Em 2019, às dificuldades operacionais da Ancine para equilibrar ações de fomento e prestação de contas, somou-se um “apagão institucional” crescente, criando insegurança jurídica cada vez maior no setor. Todos os pilares da política audiovisual foram afetados:

— o decreto anual de “Cota de Tela”, que define a proporção do espaço mínimo obrigatório a ser destinado à produção nacional no circuito de exibição conforme previsto na Lei 12.485/2011 não foi publicado em 2019; [5]

— a Ancine foi ameaçada de extinção e não foram indicados os diretores para compor sua Diretoria Colegiada: a agência terminou o ano com três cargos de Diretor vagos e apenas um Diretor nomeado. Além disso, tentativas de censura ou de imposição de “filtros” até então alheias à lógica do financiamento público perturbaram o funcionamento da Agência[6]

— o CSC só se reuniu em outubro de 2019. Além disso, teve sua estrutura alterada: a Ancine e a área econômica do governo foram retirados do Conselho, reduziu-se pela metade o número de representantes da indústria, em um terço o número de representantes da sociedade civil e aumentou-se de 7 para 8 o número de representantes do governo; [7]

— O CGFSA só se reuniu pela primeira vez em novembro de 2019; o Plano de Investimentos para o ano de 2019, que pelo regulamento deveria ter sido aprovado até abril, só foi aprovado em dezembro. Os critérios para a aplicação de recursos do FSA remanescentes do plano anual de investimentos de 2018 ainda não foram estabelecidos. O Plano de Investimentos para o ano de 2020, até a presente data, também não foi aprovado. Nenhum edital do FSA foi lançado em 2019.

— A Secretaria do Audiovisual, de 2019 até o momento, teve 04 Secretários titulares. Com a extinção do Ministério da Cultura, ela passou a integrar a estrutura da Secretaria Especial de Cultura que, por sua vez, nesse mesmo período, teve sete Secretários Especiais entre titulares e interinos, tendo sido vinculada a dois Ministérios diferentes: ao Ministério da Cidadania e, desde novembro de 2019, ao Ministério do Turismo. Omissões ainda não sanadas no ato de transferência da Secretaria Especial de Cultura de um Ministério para outro, causaram a situação de que o CGFSA permaneça na alçada do Ministério da Cidadania, provocando a paralisia do Comitê, que não se reúne por falta de convocação ministerial.

— Em decorrência do não funcionamento do CGFSA, a asfixia financeira do setor é crescente: projetos vencedores dos editais de 2018 estão sem contratação e a retenção de recursos do FSA, principal fonte de financiamento de projetos audiovisuais gerida pelo governo federal, somente no que se refere ao ano de 2019, já monta ao valor de cerca de 724 milhões. Além disso, orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual para 2020 sofreu corte de 43%, tendo sido estabelecido em R$ 415,3 milhões, menor valor nominal desde 2012.

Em síntese, pode-se dizer que, desde a extinção do Ministério da Cultura, a política cultural brasileira em geral – e a política audiovisual em particular – passa por novo momento de descontinuidade e letargia, agonizando à espera de uma definição dos seus rumos. A reboque desse vácuo de definição política e de gestão no setor público, a indústria audiovisual se confronta com um cenário de dúvidas, fragilidades e incertezas.

No meio do caos, uma pandemia: impactos da COVID-19 no setor audiovisual brasileiro

No Brasil, 5,2 milhões de pessoas e mais de 300 mil empresas atuam no setor cultural. Segundo os estudos mais recentes, a paralisação das atividades culturais como cinema, shows, teatro e visitas a museus, causará, no Brasil, um prejuízo de R$ 11,1 bilhões em três meses, considerando-se apenas a retração do consumo cultural feito em áreas ao ar livre ou espaços culturais. Considerando-se também as perdas com todos os cancelamentos, como por exemplo os de grandes eventos, só o estado de São Paulo estimou seu prejuízo em cerca de 34 bilhões. As perdas na cultura têm um efeito cascata na economia: a cada R$ 1 perdido na cultura, R$ 1,6 são perdidos na economia como um todo, e a cada cinco empregos perdidos no setor, mais um é perdido em outros setores correlatos. [8]

Em relação ao audiovisual, a pandemia chegou paralisando produções, impedindo o funcionamento de salas de cinema e inviabilizando o lançamento das obras produzidas em todo o mundo. No Brasil, esse impacto ocorre em empresas já fragilizadas anteriormente pela crise institucional do setor.

Além de arte, o audiovisual é uma indústria global, com uma cadeia de valor extensa e entrelaçada internacionalmente. Em cada um dos elos da cadeia, da produção à exibição, a geração de produtos e serviços audiovisuais dependem de atores heterogêneos e relações produtivas complexas. A pandemia tem o potencial para gerar uma profunda desorganização dessas relações.

No segmento da exibição, ponta mais visivelmente afetada da indústria, não apenas grandes complexos exibidores, mas também pequenas salas de cinema, viram suas receitas cair a zero da noite para o dia e por um período de tempo prolongado e incerto, comprometendo qualquer possibilidade de arcar com os custos fixos. A escala das demissões havidas no segmento já coloca em cheque a capacidade de reabertura no futuro pós-pandemia. Futuro esse cheio de incertezas: o quanto os hábitos dos consumidores vão mudar após a experiência de confinamento? O medo irá afastar os espectadores das salas de cinema? Ou o desejo da vivência coletiva em frente à grande tela falará mais alto e atrairá ainda mais público? Como será a relação entre o circuito exibidor e a exibição via streaming daqui em diante?

Anteriormente à COVID-19, o sucesso nas salas de cinema era um indicador para o tamanho do faturamento na exibição posterior no VOD. Agora, regras que fixavam as salas de cinema como primeira janela de exibição estão sendo flexibilizadas em vários países e o Oscar anunciou que vai admitir na competição filmes que, durante a pandemia, estrearam no streaming.[9] O crescimento do streaming afeta não só a exibição, mas também a distribuição e a produção: os lançamentos em sala de cinema costumavam ser elemento importante na atração de público para os filmes e para a recuperação dos gastos com lançamento e promoção.

Aliás, a COVID-19, provocou a “streamização” da arte em escala massiva, não apenas no cinema. Artistas, preocupados com a interação com seu público em tempos de pandemia, foram os primeiros a colocar sua arte online, gratuitamente. E a pergunta que se coloca para o futuro é: como essas relações de troca vão se reorganizar, como essa arte online será remunerada? No caso do audiovisual, que já antecipava essa tendência e já contava com plataformas e relações produtivas e comerciais muito estruturadas para o VOD, essas plataformas estão “surfando” muito lucrativamente a onda imposta pelo confinamento. A pandemia tornou ainda mais patente o quanto o streaming, ao contrário de uma “atividade incipiente” – como argumentam aqueles que querem isentá-la de tributação e obrigações regulatórias – está no cerne do mercado audiovisual.

No segmento da produção audiovisual os impactos não são menores e afetam de maneira ainda mais extensiva não só empresas como trabalhadores. Só em São Paulo, no ano passado, o segmento movimentou mais de 500 milhões de reais e gerou mais de 25 mil postos de trabalho. Com a suspensão das filmagens estima-se que, por mês, mais de 40 milhões de reais deixarão de circular na cidade.[10]

Na indústria audiovisual brasileira, uma parcela da produção de conteúdos é realizada de forma vertical, isto é, por meio de estruturas fixas dos canais de televisão. Outra parcela, que inclui também produção para a TV aberta e para a TV paga, além de cinema e uma variedade de outros conteúdos digitais, é realizada por mais de nove mil empresas produtoras espalhadas pelo país. Via de regra, essas produtoras independentes possuem estruturas fixas enxutas e trabalham e são remuneradas por projeto. Como se diz no jargão do setor, o modelo de produção é baseado em “contratação por obra certa”.

As fases de um projeto audiovisual – pesquisa & desenvolvimento, pré-produção, produção e pós-produção – são intensivas em interação humana e possuem orçamentos pouco flexíveis: pouca coisa pode ser realizada em home-office e poucos recursos podem ser remanejados de uma atividade para outra. Com a necessidade de distanciamento social, a pré-produção e a produção, que são as fases mais intensivas em mão de obra, foram completamente paralisadas. Quanto aos trabalhadores, por ser o audiovisual uma linguagem sofisticada, a criação de uma obra requer a cooperação de uma série de profissionais de diversos ofícios, tais como iluminação, som, tecnologia, edição, roteiristas, atores, figurinistas, enfim, uma série de insumos técnicos e artísticos. Esses trabalhadores, em sua imensa maioria, são autônomos e não estão protegidos nem pelos mecanismos de seguridade social aplicáveis ao emprego formal e nem pelas medidas emergenciais gerais anunciadas pelo governo para as empresas e para a população em situação de risco social e econômico.

A paralisação em razão da COVID-19 tem, portanto, múltiplos impactos para a indústria audiovisual: compromete o emprego e a renda dos trabalhadores; gera custos adicionais e perda de fontes de financiamento para as empresas num cenário em que muitos projetos já estavam com sua arquitetura financeira comprometida pelos atrasos na liberação dos recursos oriundos do fomento federal; pode tornar obsoletos roteiros desenvolvidos antes da pandemia; desequilibra as relações de poder entre os diferentes players do mercado e desorganiza a cadeia produtiva, gerando atrasos e dificuldades na produção, exibição e distribuição que vão além do período de distanciamento social em si. 

O papel do Estado para a retomada: perspectiva internacional e os caminhos no Brasil


Veja medidas adotadas para o setor da cultura e audiovisual em outros países

Nesse contexto de paralisação por um lado e “streamização” por outro, o audiovisual torna-se ainda mais central nas políticas culturais em qualquer país. Não por acaso, vários países do mundo adotaram ações emergenciais específicas para apoiar a cultura e os artistas e, particularmente, as empresas do setor audiovisual. Na comparação internacional, vemos que, além de levar em consideração as realidades dos trabalhadores e das empresas do setor cultural nas suas medidas emergenciais gerais, diversos países mobilizaram e coordenaram suas organizações governamentais, tendo conseguido lançar mão de uma ampla gama de iniciativas específicas de natureza financeira, administrativa e regulatória para fazer frente aos desafios colocados pela pandemia ao setor audiovisual. Destaca-se, também, o esforço das organizações governamentais ligadas ao setor cultural desses países em organizar e prover ao público informações sobre as diferentes medidas governamentais aplicáveis aos artistas, frequentemente criando hotsites ou linhas específicas de atendimento.

No Brasil, em que pese a Ancine ter adotado algumas medidas de caráter administrativo[11], no nível federal a resposta segue desarticulada. Propostas adicionais desenhadas pela Ancine e aprovadas por sua Diretoria em 22 de abril continuam pendentes em razão do não funcionamento de instituições setoriais fundamentais, como o CGFSA. Apesar de transcorridos mais de dois meses desde o início da pandemia, e mesmo em face da severidade da situação, o governo não convocou o CGFSA e não pôs em funcionamento os mecanismos do fundo que poderiam trazer alívio imediato ao setor. Além disso, não foram criados mecanismos de crédito compatíveis com a natureza e as necessidades das empresas do setor.[12]

Aqui, por enquanto, permanecem não só as indefinições em relação às medidas emergenciais que podem ser adotadas agora para mitigar os danos imediatos da pandemia, mas, também, as incertezas sobre o futuro da política audiovisual.

Não precisa ser assim. Diferentemente de outros setores, o audiovisual dispõe dos recursos para seu financiamento e dispõe de uma estrutura de governança que, apesar de falhas menores, é representativa e flexível o bastante para, ao mesmo tempo, acolher as políticas dos sucessivos governos e sustentar uma visão de longo prazo para o desenvolvimento integrado do mercado e da indústria audiovisual brasileira e de sua inserção internacional. Capacidade estatal existe. Só falta usar.

*Alexandre Muniz é Especialista em Regulação Audiovisual e Diretor da Associação dos Servidores Públicos da Ancine – ASPAC; Luciana Vieira é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental.


NOTAS

[1] Disponível em: https://www.facebook.com/Bundesregierung/videos/278200263316040/ (Acesso: 15/05/2020).

[2] Vide: Filho, E. M. et al (2016). O impacto econômico do setor audiovisual brasileiro. Tendências Consultoria Integrada. Também: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/bis/mapeamento-e-impacto-economico-do-setor-audiovisual-no-brasil,5859a25df13f8510VgnVCM1000004c00210aRCRD; https://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/publicacoes/pdf/valoradicionado2016.pdfhttps://oca.ancine.gov.br/sites/default/files/publicacoes/pdf/valoradicionado2016.pdf; http://rio2c.meioemensagem.com.br/noticias2019/2019/04/25/a-forca-economica-do-audiovisual/ e https://telaviva.com.br/18/03/2020/entidades-do-audiovisual-clamam-por-medidas-emergenciais-de-salvaguarda-do-setor/ (Acesso: 18/05/2020)

[3]http://cultura.gov.br/brasil-ultrapassa-meta-de-lancar-150-filmes-nacionais-por-ano-ate-2020/ e http://cultura.gov.br/brasil-fecha-2018-com-maior-numero-de-salas-de-cinema-desde-1975/

[4] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/03/tcu-manda-ancine-suspender-verbas-publicas-para-o-audiovisual.shtml (Acesso: 18/05/2020)

[5] https://telaviva.com.br/08/01/2019/ausencia-de-decreto-de-cota-de-tela-gera-incertezas-entre-produtores-e-exibidores/ e https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2020/01/08/cota-de-tela-volta-a-valer-em-2020.html (Acesso: 17/05/2020)

[6]https://oglobo.globo.com/cultura/sem-diretoria-colegiada-ancine-da-superpoder-ao-presidente-alex-braga-23987136 (Acesso: 15/05/2020); https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/08/21/interna_politica,778397/diretores-criticam-a-suspensao-de-edital-da-ancine-censura.shtml e https://www.abrilabril.pt/internacional/censura-politico-cultural-no-brasil-chega-ao-cinema (Acesso: 16/05/2020)

[7] Decreto Presidencial nº 9.919, de 18 de julho de 2019. Em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Decreto/D9919.htm. Também: https://teletime.com.br/18/07/2019/novo-conselho-superior-de-cinema-tem-menos-representantes-de-empresas-e-sociedade-e-nao-incluiu-area-economica/ e https://oglobo.globo.com/cultura/conselho-de-cinema-se-reune-nesta-quarta-pela-primeira-vez-em-2019-2401948 (Acesso: 16/05/2020)

[8] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/26235-siic-2007-2018-setor-cultural-ocupa-5-2-milhoes-de-pessoas-em-2018-tendo-movimentado-r-226-bilhoes-no-ano-anterior e https://oglobo.globo.com/cultura/paralisacao-da-cultura-vai-gerar-r111-bilhoes-de-prejuizo-no-brasil-em-3-meses-diz-estudo-24403331?fbclid=IwAR0i_4jzrG6C7O4PbnKpNufes5xa2ygSKlZdAVucyrswfibOlVzXMiRH-5A (Acesso: 15/05/2020)

[9] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/05/coronavirus-vai-marcar-o-fim-de-uma-era-no-cinema.shtml (Acesso: 17/05/2020)

[10] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/03/coronavirus-faz-filmagens-de-cinema-e-de-tv-serem-suspensas-em-sao-paulo.shtml (Acesso: 17/05/2020)

[11] Portaria Ancine 151-E, de 20 de março de 2020. Disponível em: ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/ancine-lan-medidas-em-rela-o-ao-covid-19 (Acesso: 14/05/2020)

[12] https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/diretoria-colegiada-da-ancine-aprova-pacote-de-medidas-para-mitigar-situa-o; https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/verba-represada-por-governo-bolsonaro-salvaria-o-cinema-da-extincao.shtml?fbclid=IwAR2RYex74VxY6PDvAwAPmt0yMJiu7segyTx4mHGIZhGtw-ylA6_iNTjuNww; https://telaviva.com.br/18/03/2020/entidades-do-audiovisual-clamam-por-medidas-emergenciais-de-salvaguarda-do-setor/  e https://oglobo.globo.com/cultura/2020/04/23/2274-ancine-aprova-pacote-contra-crise-mas-ainda-esbarra-em-entraves-burocraticos (Acesso: 18/05/2020)