Impacto da Covid-19 nas Políticas Públicas de Mobilidade Urbana
Por Luiz Rodrigues[1]
Diante de eventos extremos como uma pandemia, a vida das pessoas muda. As prioridades são redefinidas. No caso da Covid-19, uma das principais recomendações para evitar o alastramento da doença é o isolamento social, a fim de reduzir a rapidez de contágio, de modo a impedir o colapso do sistema de saúde. Ao implementar o distanciamento social, qualquer que seja a forma e a intensidade dele, altera-se a locomoção das pessoas e das cargas. Uma nova realidade de idas, vindas e permanências se estabelece. As políticas públicas para a mobilidade urbana que haviam sido projetadas para uma determinada circunstância precisam ser executadas em uma conjuntura bem diferente do que fora planejado.
Ruas vazias são um grande símbolo da pandemia de 2020. No mundo todo, o contato desnecessário entre pessoas foi reduzido, quer por imposição estatal ou pelo medo do contágio. Se antes o trânsito intenso era uma preocupação das autoridades locais nas cidades, com as mudanças, essa preocupação praticamente desapareceu. Quem pode e consegue trabalhar em casa assim o faz. Os restaurantes estão fechados para atendimento ao público no local, mas muitos trabalham com entregas. Entregas de supermercados também cresceram. Assim, ficou evidente a importância do trabalho dos entregadores de cargas pequenas de curta distância nas cidades, feitas por motos ou bicicletas. Neste sentido, uma das poucas ocupações que tem demandado mais trabalhadores é uma daquelas em que mais avançou a precarização dos contratos de trabalho provenientes da chamada “gig economy” ou “uberização”. O lado bom é que durante a crise, como as ruas estão vazias, há menos preocupação dos riscos de acidentes de trânsito aos quais esses trabalhadores seriam normalmente mais expostos. Por outro lado, cresce a preocupação de qual o nível de proteção social que chega a estes trabalhadores da “gig economy”. Por exemplo, como farão quando ficarem adoecidos pela Covid-19? Há grande preocupação sobre qual seria exatamente a responsabilidade do provedor de aplicativo, do restaurante ou comércio e do próprio prestador de serviço no fornecimento de equipamentos de proteção individual, de práticas para evitar o contágio e de prestação de auxílio em caso de contaminação.
Outro setor muito afetado pela pandemia tem sido o transporte público coletivo. Com a recomendação de não proximidade e de descontaminação, as empresas de ônibus, trens e metrôs têm sido orientadas pelas autoridades estaduais e municipais a executarem limpezas mais frequentes e fazer uso de produtos que reduzam a viabilidade do vírus. Muitas das empresas têm executado tais descontaminações por conta própria mesmo onde as autoridades ainda não baixaram determinação específica, o que mostra profissionalização de alguns atores do setor. Por outro lado, a dificuldade de fiscalizar e garantir a execução dessa simples prática tem demonstrado a fragilidade da regulação do transporte coletivo urbano. Talvez este seja um dos setores em que as estruturas de regulação não foram devidamente fortalecidas, a partir da criação da figura de agências reguladoras (nos anos 1990-2000), uma vez que em sua maioria são fiscalizados no município e há uma grande disparidade de capacidades e de profissionalização entre as diversas realidades. Existem municípios, ainda, que sequer realizaram um processo licitatório para suas linhas de ônibus, sendo servidos por contratos precários, como autorizações, que abrem espaço para uma série de irregularidades na relação entre o ente fiscalizador e o fiscalizado. Neste contexto, como ser efetivo na observância da descontaminação, se não há capacidade sequer para realizar uma licitação?
No entanto, o maior impacto na mobilidade urbana decorrente da pandemia parece ser mesmo a queda de passageiros dos sistemas de transporte público coletivo. A Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) estimou um déficit de R$ 933 milhões, de março até 16 de abril, nos sistemas metroferroviários em decorrência da queda do número de passageiros, uma vez que os custos se mantiveram e as receitas caíram. Somente em março, a queda do número de passageiros nos ônibus foi de 30%, segundo a Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU). Neste mês a queda foi ainda maior, chegando à redução de 76% em Salvador, na Bahia. As receitas sofreram uma queda drástica, mas muitos dos custos permanecem iguais na operação de transporte público. Existem empresas que já sofrem com a falta de fluxo de caixa. Em alguns países já existe aprovação de pacote de ajuda governamental para manter em funcionamento o sistema de transporte público. Mas dada a situação fiscal atual do Brasil, especialmente nos municípios, esta não parece ser uma solução possível, ainda que se discuta o papel da União em prestar assistência financeira aos Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme preconiza a Lei 12.587, de 2012, que estabelece a Política Nacional de Mobilidade Urbana.
A queda do número de passageiros já está levando à uma série de discussões sobre reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos da prestação de serviço de transporte urbano. Uma das possíveis soluções para mitigar o prejuízo do sistema de transporte público seria o de redução do número de viagens, para reduzir parte do custo variável. No entanto, essa medida gera novas preocupações. Uma delas é que prejudica a locomoção dos trabalhadores do setor da saúde, indispensáveis ao enfrentamento da pandemia, muitos dos quais dependem do transporte público. Serão eles duplamente penalizados? Outro problema é que com a redução do número de viagens, os passageiros que precisam usar o sistema terão que se aglomerar ainda mais nos poucos veículos rodando pela cidade, o que pode comprometer as medidas de contenção de transmissão da doença. Ao contrário, em alguns sistemas de transporte público de países desenvolvidos têm havido o aumento no número de viagens bancados por recursos públicos, para que quem precisa trabalhar chegue rapidamente e com menor risco de contaminação. Outra saída menos agressiva de redução de viagens poderia ser viabilizada com o adiantamento de compras de créditos nos sistemas de bilhetagem pelo poder público, a qual poderia ser descontada paulatinamente com a volta dos passageiros no passar do tempo. Com os sistemas de bilhetagem praticamente todos já eletrônicos, não parece ser algo muito complexo do ponto de vista técnico, porém fica a dúvida sobre como o controle externo poderia interpretar tal tipo de operação. E também há dúvidas se as prefeituras ou governos de estado teriam tais recursos para implementar uma solução deste tipo, neste momento de queda de arrecadação decorrente de desaceleração das atividades econômicas.
O momento é de buscar soluções rápidas para problemas agudos. Algumas opções estão sobre a mesa. No entanto, passado o momento crítico, não há dúvidas de que a pauta da mobilidade urbana voltará a estar na agenda para a discussão de problemas crônicos ainda não solucionados. Implementar a Política Nacional de Mobilidade Urbana deve ser uma questão central, favorecendo o transporte coletivo, buscando a sustentabilidade destes sistemas com a devida prioridade na gestão do trânsito das cidades. Aproveitar os dispositivos de parcerias privadas, entendendo suas potencialidades e limites é fundamental na maioria das cidades, bem como é crucial incorporar o conceito de desenvolvimento das cidades orientadas ao transporte público sustentável (TOD, em inglês), buscando capturar parte da valorização no entorno dos projetos como fonte de financiamento.
Sem dúvida a Covid-19 tem sido uma fonte de adversidades em múltiplos setores de políticas públicas, para além do impacto exacerbado que tem sobre os programas de saúde. A mobilidade urbana, com suas peculiaridades, tem desafios especialmente complexos quando relacionados aos sistemas de transporte público. Porém, a redução do uso do transporte individual nestes dias fez com que a poluição atmosférica fosse reduzida no mundo inteiro, o que lança indagações sobre se as sociedades estão fazendo uma boa gestão da mobilidade, se não há certo abuso do uso do transporte individual. Preocupações com a saúde e com a resiliência mostram também que, passados esses momentos mais críticos, a sociedade terá que rediscutir a inserção do transporte ativo (a pé e bicicleta) no dia-a-dia das pessoas. É um momento de ação e de reflexão. A cidade não podia parar. Mas parou.
[1] EPPGG, Engenheiro Agrônomo, Especialista em Relações Internacionais e Mestrando em Desenvolvimento e Governança. Trabalha no MDR.